Rita Vian ao vivo no Museu do Papel: silêncio que se vai rappar o fado!

Celebrou-se ontem, 20 de janeiro, a Festa das Fogaceiras, um dos dias mais importantes para Santa Maria da Feira. Qualquer feirense que se preze sabe que, durante o mês de Janeiro, tudo na sua terra gira em volta desse feriado municipal.

Este ano não foi exceção e, para reforçar a vertente cultural desta icónica data, foi criada uma nova iniciativa.

3CC – 3 Concertos, 3 Casas” é um ciclo de três concertos a decorrer em três espaços distintos e bem conhecidos da população. Valter Lobo atuou, no Cineteatro António Lamoso, no passado dia 11, Rita Vian no Museu do Papel Terras de Santa Maria, dia 18, e a festa terminará no Salão Nobre dos Paços do Concelho a 25 de janeiro com o concerto – gratuito – de Amara Quartet. (tal como aconteceu no “Sons no Património” há cerca de três meses) ficámo-nos pelo Museu do Papel.

E ficámos muito bem!

A receção não podia ser mais calorosa (apesar do gelo que se fazia sentir): a oferta de uma fogaçinha e de um copo de cerveja cai sempre bem! (mesmo que não a bebamos…). Mas deixemos os comes e bebes de parte e foquemo-nos naquilo que nos fez aguentar o frio daquela noite: a Música!

A primeira cara conhecida a aparecer é João Pimenta Gomes, o mestre da eletrónica e dos coros distorcidos.

Ainda se passam alguns minutos, de suspense, até Rita Vian aparecer, num cenário quase místico, num bom trabalho de luzes, e começar a percorrer o corredor que a separava do palco. Percurso que faz devidamente acompanhada pela banda sonora que o seu colega vai desenhando para o efeito.

Numa metáfora perfeita com a música de Vian – esse casamento improvavelmente certeiro entre os beats do Hip-Hop e a melancolia do Fado – também o espetáculo só tem início quando os dois (Rita e João) se juntam.

Como um verdadeiro rapper, Rita caminha de um lado para o outro do palco, enquanto vai sentindo a pulsação antes de “cuspir” aquilo que nos quer dizer. “Plana” é a primeira confissão que nos faz. Em constante movimento, ao mesmo ritmo que dá passos gigantes, vai-nos expondo a um dilema religioso que resolve concluindo que vai “sempre ver o Céu com a mão.”

Sem uma palavra a mais nem a menos, seguimos de imediato numa viagem ao passado, que é como quem diz a 2019, enquanto Vian revisita as suas “Diágonas”. Essas “flores à janela”. Também aqui os técnicos de luz fazem um excelente trabalho ao criar todo um ambiente deliciosamente sombrio no qual os versos “Na falta do dinheiro / Só o amor pode crescer” vão cair tão, mas tão bem!

Na primeira interação com o público da noite, Rita Vian começa por agradecer a Santa Maria da Feira, e continua contando que tem andado a apresentar (ao vivo) o seu EP “CAOS’A”, confessando que “levá-lo a palco é sempre uma viagem”.

Diz-nos ainda que este é o seu primeiro concerto de 2023, ano em que vai começar a despedir-se desse mesmo EP e partir em novas viagens, pois já existe material novo para o fazer. (ficamos ansiosamente à espera!) Remata, novamente, num agradecimento: “obrigada por partilharem isto comigo!”

Numa total concordância com aquilo que acabou de divulgar, Vian segue de um lado para o outro, rappando as palavras “Para fechar a página carrego a cruz”. Verso poderosíssimo da faixa homónima do seu EP de estreia. Feitas as pazes com o passado, ainda olha corajosamente o futuro adivinhando que “o mais puro é quem vai resistir”.

E se até agora o Fado tinha sido maioritariamente rappado, com “Sereia” a história já muda de figura… Os samples de guitarra portuguesa com que o João abre este tema não enganam ninguém. Em mais uma nostálgica viagem ao passado, lá vamos nós até 2020, esse ano que todos queremos esquecer, mas que se pensarmos bem até nos deu algumas coisas bonitas… Esta música por exemplo…

Já a Rita, o ano de 2020 ofereceu-lhe o Branko, que ao fazer um remix desta “Sereia” catapultou o nome “Rita Vian” para a ribalta. Ajuda e amizade que a cantora humildemente agradece, nunca deixando esquecer que “esta foi a música que me trouxe ao palco”.

E eis que “Tudo Vira” e voltamos de novo ao “CAOS’A”, em particular a esse tema, que apesar de não ser single, costuma ser o preferido nas apresentações ao vivo. Talvez por ser tão humano: afinal todos nós somos “daqueles corações que batem, que se desviam, dos que se arrependem”…

O que vejo como resposta, porém, é um público anestesiado, sem reação alguma, com a exceção de duas senhoras nas primeiras filas que se vão abanando. Benditas!

Em casa dos meus avós cantava-se um Fado” ouvimos a Rita dizer em mais um momento de partilha, que continua assim: “Um Fado cantado em dueto, a avó Céu e o avô Luís cantavam-no um para o outro, chamava-se “Amor sem par”. Eu para trazer a minha casa para os concertos trago esta música.”

É visceralmente sozinha – sem beat e quase sem luz – que Rita, de joelhos no chão, como que a rezar uma prece, canta essa relíquia familiar tal como a aprendeu em casa. E nós sentimo-nos lá! Sem dúvida o momento mais comovente da noite.

O tema que se segue começa com Rita ainda no chão compreensivelmente atordoada pela emoção daquilo que acabou de acontecer. Cabe ao João e à introdução eletrónica de “HPA” fazerem levantar a cantora que (numa bela metáfora) renasce ao som da sua música.

Já desperta e com energias renovadas, Vian regressa à sua própria poesia, enquanto se passeia ritmadamente pelo palco, “cuspindo” pérolas como “Não é a falar que se aprende algo / É a ver que conseguimos”, ou “Porque é na sensação do aperto / Que me cruzo comigo”. Sendo que as maiores e mais poderosas pérolas aparecem no refrão, durante o qual Vian nos anuncia, num fadado lamento, que “Há por aí / Uma versão alternativa de mim / Em que eu com os meus mil braços / Termino os abraços / Em que me perdi”.

Rita Vian ladies and gentlemen: rapper, fadista, poeta…

E já que estamos a enaltecer esta multifacetada artista aproveitemos também para realçar a sua evolução performativa. Que foi gigante! Esta Rita que vemos hoje, no Museu do Papel, já não é mais aquela Rita tímida de olhos focados no infinito que vimos no Largo da Estação de Ovar há coisa de oito meses atrás… Esta Rita canta-nos a sua “Purga” (no verdadeiro sentido da palavra!) confiante e cheia de power, gesticulando com as mão a mensagem que nos quer passar com a letra. Esta é uma Rita que já limpou a “CAOS’A” e está pronta para (desarrumar) outra!

(Guess that steppin on the big stages – Bons Sons, Alive, Paredes de Coura – does that to you…)

Como que para nos preparar para o que aí vem, Rita volta a dirigir-se à audiência: começa brincando dizendo que “agora já está quentinho”, e segue anunciando que “Esta (música) ainda não saiu. Chama-se “A cara da lua””.

As luzes baixam e o resultado é mais um momento de magia, em que Rita canta, novamente, a cappella e no chão, apenas com o seu cabelo, azul dos holofotes, a descoberto.

Uma pausa entre músicas é agora aproveitada para os agradecimentos. Que são vários!

Vian agradece primeiramente ao Museu do Papel, pelo convite, e ao público (que esgotou a sala!) pela presença. Depois agradece ao João Pimenta Gomes e à sua “equipa lá trás” composta por Ângelo, Diogo e Coimbra.

Infelizmente só em momentos como este – de aplauso – é que damos por conta da plateia!  (talvez seja do frio…)

E eis que chegamos ao último tema do CAOS’A tocado esta noite. “Trago” foi a faixa escolhida para ser o single do EP e tinha tudo para deitar o Museu do Papel abaixo. Não fosse o concerto com lugares sentados… O que, neste caso em particular, se tornou um verdadeiro desperdício: uma relíquia destas merecia mesmo que pudéssemos “dançar à nossa beleza”!

Passada toda a sua carreira a solo a pente fino, é agora tempo de Vian honrar os seus primórdios.

Fá-lo com “Carmen” música que partilhou com “Mike El Nite” no seu EP “Inter-Missão” em 2018. A música que tão bem conhecemos da voz incontornável de Amália Rodrigues, cai na “rapper fadista” que nem uma luva, e, quando tocada ao vivo, consegue sempre deixar o público rendido. Hoje, vemos esta arrojada versão ganhar vida, pelas mãos do João, que monta um ambiente sonoro pesadíssimo, e pela sombra (again técnicos de luz on fire!) e voz de Vian, que recria este clássico de um jeito lindo. Quase tão lindo como o sonho do qual Carmencita foi atrás…

Tal como previsto, o público adora esta despedida, e levanta-se em peso para aplaudir.

E assim fica enquanto a Rita e o João não voltam ao palco.

Como que para oferecer aos presentes – que agora já se encontram na sua maior parte de pé – uma última chance para dançar, a música repetida, neste curto encore, é “Tudo Vira”: a hipótese perfeita de redenção! Mas ainda assim, são muito poucos os que se atrevem.

Fica para a próxima…

Agora sim, Rita Vian despede-se em definitivo de Santa Maria da Feira, agradecendo, com estas bonitas palavras: “Entrámos com a sala fria e saímos com a sala quente. Obrigada a vós.”

É caso para dizer:

Obrigada, nós!

Reportagem: Mariana Couto

Fotografias: Paulo Homem de Melo

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