Falar de Fred é falar de muita coisa. Muita coisa mesmo! É falar de talento. É falar de humildade. É falar de generosidade. (três pilares naturais de quem nasceu e cresceu por entre xutos e pontapés…) É falar de amor. É falar de amizade. É falar de Buraka Som Sistema. De Orelha Negra. Da Banda do Mar. De Dapunksportif. De Yellow W Van (para os mais saudosistas). É falar de timidez e de vergonha – sem vergonha! É falar de superação. É falar de coragem. Muita coragem!
Pessoalmente já escrevi sobre o Fred duas vezes.
Sempre indiretamente, lá está, porque assim mesmo é o Fred (e o seu trabalho) – discreto, subtil, quase mudo, mas super importante, de extrema elegância e perspicácia.
Hoje, porém, a tarefa é outra: hoje os holofotes estarão inteiramente voltados para o banco da bateria!
O motivo? Um espasmo (demorado) de coragem que levou Fred a aventurar-se numa das maiores viagens da sua vida artística: lançar um álbum a solo. Não é assim tão comum para um baterista este tipo de ousadias, mas o Fred já provou que não é um baterista qualquer. Se há alguém que se consegue fechar sozinho em estúdio, compor, arranjar e gravar todos os instrumentos de 15 músicas, que se encontram todas (no fim) para nos ajudar a nunca mais cair, esse alguém é o Fred. Para nosso alívio, e ao contrário do que o título poderia indicar, “O Amor Encontra-te no Fim” não foi o fim de nada. Talvez de um luto… Mas no que diz respeito à carreira a solo de Fred, essa purga em forma de disco, foi apenas o princípio.
Passada a ressaca emocional e os dois anos que a ampararam, eis que Fred volta a estúdio. Afinal de contas “há sempre uma noção de fazer melhor”…
O seu segundo trabalho em pouco ou nada se assemelha ao seu antecedente. Desde logo foi gravado no Porto (yeah!). E, desta feita, gravado em conjunto com outros músicos. Para “Series Vol.1 – Madlib” Fred convocou Eduardo Cardinho (vibrafone), Márcio Augusto (baixo), Tomás Marques (saxofone), e Karlos Rotsen (piano e teclados). Uma formação de excelência, bastante ligada ao Jazz, que ajudou Fred a encontrar o seu caminho e a sua voz por entre o universo imenso que é o repertório de Otis Jackson, Jr. aka Madlib. O resultado foi um disco diferente, não de versões, mas de reinterpretações e totalmente instrumental. (Again coragem!)
Foi com esse tributo ao artista californiano nos seus corações, e na mesa do merchandising – hoje especialmente acompanhado por uma outra surpresa a solo com duas semanas de vida apenas (lá iremos noutras núpcias!) – que Fred e companhia se fizeram à estrada. Estrada essa que não foi tão fácil de percorrer assim, por motivos pandémicos, mas que, apesar de tudo, sempre ofereceu uma bela vista. E por falar em Bela Vista, um dos vários exemplos disso mesmo, foi o concerto com que Fred estreou o palco “Futura” do também estreante “Kalorama” no ano passado. Ou se quisermos ficar aqui mais por perto, tivemos os concertos na Casa da Criatividade e no Auditório de Espinho, dados pré e pós pandemia respetivamente.
Felizmente para nós a viagem (apesar de longa) ainda não acabou.
Aliás parece estar ainda a começar… Para entrar no ano de 2023 em grande, Fred e os seus companheiros de aventura prepararam-nos uma bonita surpresa: uma tour de inverno pelos mais importantes clubs do país.
Tour essa que arranca hoje, 17 de fevereiro, precisamente na cidade onde o “Series Vol.1 – Madlib” nasceu: no Porto.
Primeira paragem: Maus Hábitos!
Somos recebidos na mítica sala da invicta com “um bom filho do vento” do também mítico Manel Cruz a bombar nas colunas. Estamos no Porto alright! A noite começa bem e promete…
Se há concerto em que o público é o espelho do artista, esse concerto foi este! Um público fiel, algo tímido, expectante, mas sossegado, que só aqueceu – ou em alguns casos se levantou – quando o sexteto composto por Fred, Eduardo Cardinho, Tomás Marques, Karlos Rotsen, Diogo Santos (teclados) e José Garcia (baixo) finalmente apareceu.
E tal como o espelho nos mostra o nosso reflexo, o público recebeu, na intro que abriu o concerto, exatamente o mesmo que deu: um prelúdio com sabor a aquecimento, para espantar os nervos, e para os músicos se afinarem uns com os outros. Só com “MHB” é que começamos todos (em cima e abaixo do palco) a entrar na atmosfera tão única e tão eletronicamente hipnotizante deste novo registo de Fred. E por lá ficámos, a flutuar, até à última batida do último segundo da última música.
Ainda com os ritmos oscilantes da faixa inaugural do álbum – ditados em especial pelos sintetizadores – a ecoar em loop nos ouvidos, reparamos agora que o Tomás Marques troca o saxofone pela flauta transversal. E as nossas veias fervem de entusiasmo! Sabemos bem o que esta troca significa. Vem aí a majestosa “Road Of The Lonley Ones”! (rua que de solidão tem só mesmo o nome…)
Nesta rua, todos os instrumentos se juntam, meticulosamente um após o outro, para nos iluminar o caminho enquanto a atravessamos. Ao início somos recebidos pela delicadeza do vibrafone, dos coros – ao vivo substituídos por linhas de teclado – e da flauta. Delicadeza que não se perde, mas cresce em som, com o apoio do ritmo imposto pela bateria e pelos teclados. Pelo meio da travessia há uma ponte de silêncio, que Fred preenche com um delicado e delicioso solo. Do outro lado da ponte, onde chegamos já mais quentinhos, é o piano quem brilha, guiando-nos com a sua luz até ao fim do percurso.
E eis que – passada a timidez inicial e a pressão do solo (o seu único da noite) – Fred se chega finalmente ao microfone. “Obrigada por terem vindo!” são as palavras que escolhe para nos cumprimentar.
Nos dois temas seguintes, o Fred vira Tim, e a influência assumida que a família mais bonita do Rock português tem no baterista torna-se quase palpável de tão evidente. Bem no centro do terreno, o músico vai atentamente dirigindo, feito maestro, os seus companheiros nos seus (vários) momentos de glória, servindo-se para tal da sua cabeça, das baquetas, e até mesmo do sorriso (que por esta altura já vai bem aberto!).
Em “Lakers” os holofotes viram-se para a parte esquerda do palco, onde Karlos Rotsen e Diogo Santos fazem, ora juntos, ora separados, magia com os seus teclados. É nessa magia que nos perdemos. Enfeitiçados por uma linha de sintetizadores, com tanto de spacey como de viciante, somos, imediatamente, levados numa viagem pelo cosmos desconhecido, da qual regressamos, a custo, e só quando a música termina.
Novamente com os pés assentes na Terra, mas prontos para novas excursões, partimos agora rumo a uma “Distant Land”, sendo que, desta vez seguimos embalados por um cativante solo de saxofone.
De volta ao quarto andar do Maus Hábitos, a nossa atenção volta a recair na bateria: debruçado sobre ela, vemos hoje um Fred diferente – não em termos de técnica ou execução, porque a mestria sempre lá esteve – mas em termos de à-vontade… Este é um Fred confiante. Um Fred orgulhoso do seu trabalho e dos seus amigos. Conversador (vai ao micro no fim de todas as músicas só para agradecer). Este já não é o Fred que gravava de costas voltadas para a régie, nem é o mesmo Fred que virou costas ao público para se atirar ao piano no Lux. Este é um Fred descontraído. Um Fred feliz.
E poder testemunhar isso já faz valer todos os cêntimos do bilhete!
Em mais um desses momentos de felicidade, o maestro sentado à bateria, volta a tomar a palavra para nos dizer que as músicas que tocaram até ao momento são do disco novo, o de homenagem ao Madlib, e que a próxima se chama “C’mon Feet”.
Neste tema em particular, talvez por ser o mais cinematográfico de todos, tornamos a partir para longe, desta vez para um qualquer deserto longínquo. Ainda ficámos por lá alguns minutos, com os nossos feet a marchar obedientes ao andamento que a bateria, sincronizada com o saxofone, lhes impunham. Mas rapidamente voltamos à real, e ao palco, onde o Fred e o Diogo se divertem, sorridentes os dois, numa alucinante battle de ritmo, uma espécie de confronto de titãs – eletrónica dos sintetizadores vs acústica da bateria – do qual todos saem vencedores. O público especialmente.
É envoltos neste entusiasmo que nos despedimos de Madlib. Mas não de Fred e companhia!
No último ataque ao microfone da noite, o filho de Kalú avisa-nos, num tom derradeiro, que os temas com que o concerto irá acabar são da autoria de J.Dilla.
E se com Madlib a vibe caía numa espécie de “jazz-espacial”, com a música de Dilla toda essa atmosfera é amplamente expandida. Como uma galáxia em movimento! Galáxia de que todos fazemos parte: nesta altura já não existe distinção entre palco e plateia. O transe vai tão alto, que o concerto se transforma agora numa pulsação conjunta, ao sabor da qual banda e público vibram em uníssono. Seja dançando, ou saboreando de olhos fechados, seja atacando as teclas dos sintetizadores a uma velocidade supersónica, ou rodando em hipnotizantes headbangings… Estamos todos ligados.
E ligados ficamos.
Mesmo após o espetáculo terminar.
Mesmo após o Diogo, o Karlos, o Eduardo, o Fred, o José e o Tomás se abraçarem numa agradecida vénia.
Mesmo depois dos aplausos.
Porque a Música, quando é assim tão verdadeira, nunca mais se esquece!
Reportagem / Fotografias: Mariana Couto