Lisbon Poetry Orchestra ao vivo na feira do livro do Porto… contra os canhões declamar, declamar!

Não deixa de ser curioso que tenha sido a cidade do Porto o palco escolhido pelos Lisbon Poetry Orchestra para o lançamento do seu mais recente trabalho…

Mas foi mesmo nessa celebração da palavra, que dá pelo nome de Feira do Livro do Porto, que “Os Surrealistas” foi oficialmente apresentado ao mundo!

(Sorte a nossa…)

 

Um casamento, que apesar de improvável, não poderia ter sido mais feliz, pois esta edição da Feira, para além de ser toda ela uma gigante e merecida homenagem à poeta Ana Luísa Amaral (infelizmente falecida dias antes da abertura da mesma), é também dedicada a essa promessa de futuro que é a Poesia.

E se há coisa que os Lisbon Poetry Orchestra defendem, celebram, partilham e amam é a Poesia!

Felizmente não são os únicos! (como já havia alguém que dizia…)

Os jardins do Palácio de Cristal estão, hoje especialmente, recheados de amantes desse particular estilo de escrita.

Sentados na relva ou sentados em cadeiras, encostados a árvores ou simplesmente em pé são muitos os rostos que vão enchendo aquele recanto tão acolhedor que circunda o coreto (onde a magia acontece) que chamamos de Concha Acústica.

Concha essa belissimamente decorada pela artista “Franpancispiscapa” (Franpancispiscapa / Ciclo (@franpancispiscapa) • fotos e vídeos do Instagram), que inspirada na Poesia de Ana Luísa Amaral procurou, também ela, dar voz, através das suas ilustrações, à inquietação, ao caos, às questões de género e à liberdade.

A primeira a subir a este revolucionário coreto é a multi-instrumentista e cantora IAN que nos encanta com um concerto em tudo (e mais alguma coisa) concordante com o tema da Poesia e da palavra.

IAN apresenta-se com toda a sua roupa em preto e o cabelo branco (a fazer lembrar a icónica “SIA”) numa cuidada estética de total contraste, que condiz na perfeição com aquilo que traz para nos oferecer: uma música com tanto de fresh e cool como de melancólico e sombrio, que apesar de viver crucialmente da eletrónica nunca deixa de soar a clássica. Em palco IAN desdobra-se entre um computador, uma mesa de mistura, o seu violino preto (claro!) e a sua voz para nos proporcionar um espetáculo aliciante (divertido até!) mas ao mesmo tempo fortemente interventivo.

O concerto termina precisamente com um desses momentos de intervenção. Mais em específico com um forte testemunho: o seu próprio.

Num tom incrivelmente pessoal, IAN dirige-se ao público, e após partilhar que nasceu na Rússia e que reside há vários anos em Portugal, diz-nos (num alívio palpável) o seguinte:

“É tão bom viver num país democrático em que o maior poder é o da palavra!”

Nós engolimos em seco, damos graças por vivermos onde vivemos, recuperamos o fôlego e aplaudimos.

Quanto ao resto da noite, não é preciso acrescentar rigorosamente mais nada: o mote está dado!

Ainda o sol não se tinha posto quando chegou a altura dos Lisbon Poetry Orchestra nos iluminarem com a sua magia. O tempo que passou, entretanto, em desmontagens e montagens de sets, foi o que chegou para refletir, acalmar, e recuperar forças. Vamos precisar bem delas! Estamos prestes a mergulhar fundo no surrealismo!

Os espetáculos desta orquestra poética são sempre acontecimentos especiais cheios de poder e intenção. O segredo? Para além do gritante talento de todos os seus intervenientes claro… A atenção ao detalhe! Estes aprendizes de surrealistas sabem muito bem o que estão a fazer e não deixam nem um único pormenor ao acaso… Nem sequer a espontaneidade. Da cor da roupa à cor das luzes, da ordem à desordem, dos barulhos aos silêncios. Nada é por acaso. Tudo é pensado. Tudo em nome da Poesia!

Rumo à liberdade!

E é assim mesmo, rumo à liberdade, que vemos os primeiros elementos da orquestra a entrar em palco (ou direi em cena?) porque afinal de contas não são o Mário João Santos (bateria), nem o Alex Cortez (baixo), ou o Luís Bastos (sopros), o Filipe Valentim (teclas), nem o Sérgio Costa (guitarra) que estão a subir ao coreto…. Afinal esta não é a banda dos LPO, este é um exército surrealista (com toda a ironia que isso acarreta), que invadiu uma cidade que não lhe pertence, para nos dar a conhecer aquela que é a única e verdadeira arma: a palavra!

Com eles vem também José Anjos (outro militar poético), lá está, porque nada é deixado ao acaso, e porque se o surrealismo nasceu de um manifesto, este concerto também o há de fazer: a revolta começa porque “É Preciso”. Esse poema de Cesariny que nos ensina, a uma velocidade alucinante, que é preciso correr e é preciso ligar, que é preciso sorrir e é preciso suor, que é precisa a mosca um por cento doméstica e é preciso gente para a debandada, porque no fim de tudo, é preciso ser livre!

Da euforia da liberdade passamos quase bipolarmente para a apatia de “um dia perfeitamente para cães”. Dia esse que é partilhado por José Anjos com a recém-chegada ao palco Paula Cortes (primeira personagem não militar) que parece ter trazido consigo o veneno. O veneno que António José Forte reservou para nós. Encontram-se os dois a trezentos anos do amor e a trezentos da morte. Juntos reclamam, embalados pelo baixo de Alex Cortez, desse alguém que não percebia nada de comércio e que lançou no mercado esta ferrugem.

O par desaparece para dar ao mestre Cesariny oportunidade de voltar a subir ao palco, primeiro pela mão de André Gago (fuzileiro poético) que conduz sozinho o seu Navio de Espelhos, e depois pela mão partilhada de Gago e Nuno Miguel Guedes (o único elemento da orquestra que se veste aprumadamente de branco!) E o único também que se dirige ao público (pelo menos para já). “Obrigado por estrem aqui no lançamento dos surrealistas!” diz-nos sorridente. E nós não partirmos para Elsinore sem aplaudir a sua alegria!

É precisamente nessa cidade feita castelo que fica, algures perdido entre nós e as palavras, o poder da Poesia.

Que é o nosso dever proteger!

Contra os canhões declamar, declamar!

Com o coração cheio, seguimos novamente viagem, agora a (mu)dançar, em direção ao segundo poema não gravado da noite. E tal como o saxofone dá agora vez ao clarinete, também o André dá vez à Paula, que brilha em conjunto com o Nuno nessa sucessão de verbos imperativos feita poema com que Fernando Lemos nos recorda. Talvez por ter o seu próprio coração ainda em Elsinore, o Nuno quase que grita o último (e mais importante) dos verbos: “Resistir!”

De repente, eis que as luzes mudam. Com elas a intensidade. Entra (para acompanhar a Paula que se mantém ainda em palco) a última das personagens deste universo surrealista. Não é militar, não é espião nem charmoso, muito menos se veste aprimoradamente… Talvez ajude a adivinhar esta persona se eu adiantar que há uns meses atrás, no concerto no MAP em Oeiras, quem desempenhou o papel que está prestes a ser encarnado foi nem mais nem menos do que Adolfo Luxúria CanibalThe one and only! Assim talvez fique mais fácil… Entra Miguel Borges: o delinquente, o alucinado!

E a combinação entre o sex appeal de Paula e a alienação de Miguel, enquanto ecoam entre si as palavras de Carlos Eurico da Costa, é como chamas e gasoliiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiina! Tão intensa que acreditamos piamente que seria capaz de destruir em segundos toda “a cidade de Palagϋin” não restando nem um do seu 3×9 um milhão… No rescaldo da explosão, o Miguel fecha repentinamente o livro/disco/manifesto com toda a força ao microfone (para que nos assustemos com o barulho) e finge atirá-lo à plateia. Na sua interpretação estão assim lançados os surrealistas. (não deixa de ser verdade…)

Sem nunca desistir da sua delinquência, Miguel Borges (agora sozinho com a banda em palco) transforma-se por completo no Homem Bisado, enquanto passeia o seu corpo irrequietamente pelo coreto, numa interpretação tão espetacular, que quase já nem nos lembramos de quem gravou originalmente estes versos de Pedro Oom. (Pessoalmente tiro o meu chapéu a este surrealista em particular: fazer-me esquecer da hipnotizante voz do Sr. Canibal não é para qualquer um…) Termina prometendo que amanhã tirará o curso de sonhador espacializado, e nós não temos outro remédio senão acreditar na mentira…

Retornam agora ao palco o Nuno e o Anjos, mas desta vez não é o mais bem vestido dos surrealistas quem nos fala, mas o seu companheiro. Antes da música começar, José Anjos diz-nos que os LPO vão dedicar a próxima atuação a um amigo recentemente partido, pois “O Poeta em Lisboa”, de António José Forte, era um dos seus poemas favoritos. Os aplausos que se fazem ouvir são para todos. Presentes e não presentes. A homenagem decorre, naquele lindo coreto, sem pressa de chegar seja onde for, e bem para lá das quatro da tarde, depois de assistir a tamanha beleza, dói-nos um sorriso nos lábios.

As luzes voltam a mudar. O vermelho que invade agora a Concha Acústica lembra-nos o inferno e suas labaredas. O concerto já dura há algum tempo, e nós já aprendemos bem a lição: o próximo a subir ao palco é o Miguel. Traz consigo um outro mestre, um tal de Alexandre O’Neill e o seu poema menos original.

Façamos agora uma curta pausa no surrealismo, e voltemos, por momentos, ao tempo presente. Os LPO que me perdoem, bem sei que o disco/livro que nos está a ser apresentado, deve ser uma homenagem pura à Poesia surrealista portuguesa e nada para além disso, mas porra com este poema fica muito difícil de separar as coisas! Porque dias estranhos houve nos últimos anos em que o medo teve de facto tudo e porque houve quem tenha, como consequência, chegado a rato…

Mas esqueçamos essas mágoas e atentemos novamente na Poesia. (ela sim merece toda a nossa atenção!)

A Poesia e o Miguel…

Que continua no palco a dar vida aos versos de O’Neill como um verdadeiro herói (desses que o medo vai ter) a desfazer-se em gargalhadas senis e gritos até acabar por abandonar o palco enquanto a banda ainda tocava completamente envolto na sua alienação.

(Se algum dia alguém se lembrar de fazer uma versão portuguesa do filme Joker por favor venham buscar este homem!!)

Já vamos percebendo que os surrealistas tinham uma certa admiração por cidades. A música que se segue é mais um exemplo disso mesmo. Só que desta vez não lhe sabemos o nome, sabemos apenas que está oculta. Passada a loucura, é vez de voltarmos ao conforto do charme feminino com que a Paula nos alicia a mergulhar, nas palavras de Fernando Lemos, e nesse rio de cimento que persegue as ruas.

Ao voltar à tona, reparamos que, entretanto, se juntou à Paula o José Anjos. Numa sintonia incrivelmente ritmada (dançável mesmo!) convidam-nos a fazer parte do seu projeto de sucessão. Tentam (quase com sucesso) convencer-nos a fazer ângulos retos e a beber um copo de leite com nitro-glicerina. (palavras de António Maria Lisboa, mas que por alguma razão ainda nos soam um bocadinho “a garota não”)

E eis que (ATENÇÃO ATENÇÃO!!) a Paula deixa o palco e o Anjos encarregue do poema seguinte. Está sozinho! (REPETE-SE) Está sozinho! O resultado é um dos momentos de maior sarcasmo e humor de todo o concerto! (ATENÇÃO!! ATENÇÃO!! AVISAM-SE TODAS AS POLÍCIAS!!) Fugiu uma surrealista! Assume-se que era perigosa! (INSISTE!) Um dos momentos de maior sarcasmo e humor de todo o concerto! (ATENÇÃO!!) O público sorri com extrema violência! Tamanha ousadia só termina quando o Anjos saca uma banana! Nada de perguntas…

E é com esta chamada geral, deixada por Mário-Henrique Leiria, que os Lisbon Poetry Orchestra acabam de vez com o surrealismo. Com ele vão também as personagens. Ficam os artistas e os seus escancarados sorrisos.

José Anjos toma a palavra para nos dizer que as duas últimas músicas que irão tocar fazem parte do seu outro disco de seu nome “Poetas Portugueses De Agora”. Disco cujo conceito foi convidar vários poetas do “então agora” a escreverem sobre música composta pelos LPO.

O primeiro poema “Epitáfio de Domingo” (“porque é Domingo” diz-nos o Anjos), é da autoria de Cláudia R. Sampaio. Quem habita estes versos, como se tivessem saído das suas próprias veias, é André Gago ao confessar, com toda a convicção, que “tudo o que disse foi com silêncio” e que “quando me conheceste já eu não existia, e tu sabes que essas saudades que tu vais tendo são as minhas”.

O último poema é também aquele com o título mais surreal (está certo!). “N4V2mix” é da autoria de Daniel Jonas. Cabe a Miguel Borges defender os versos escritos por esse poeta da casa. Desafio que cumpre, numa simbiose perfeita com a guitarra de Sérgio Costa, sem nunca sair da sua interpretação visceral. Numa contínua inquietação que arrasta pelo palco vai gritando cada vez mais alto “que queres?”, “que dizes?”, “ninguém te ouve!”, “ninguém te vale!”, “ninguém que fale por ti e pelo que fosses!”, queixando-se do “espelho mau!” e da “vida aparente e sua espuma”. Chega mesmo a atirar-se para o chão tal é o entusiasmo.

E assim se termina um concerto: em êxtase e beleza!

É ainda o Miguel o último a falar ao público: provoca-nos, antecipando já o encore que aí vem, ao perguntar “pode-se ou não se pode?” respondendo de seguida “então não se pode…” numa gargalhada (desta vez sã).

Por esta altura, o coreto enche-se de gente: são agora 10 os poetas lisboetas orquestrados em cima do palco!

Confessam ir fazer um encore improvisado, já que na verdade não saíram nem voltaram a entrar em palco, porque (nas suas próprias palavras) “há muitas escadas e somos muitos”.

O derradeiro de todos os poemas é a prova provada (ou neste caso declamada) de que seja de que maneira for “pode-se escrever”. Poema escrito (porque assim o podia) por Pedro Oom.

Segue-se a vénia final, abafada pelos devidos aplausos, e chega finalmente o momento por que todos esperávamos: o lançamento dos Surrealistas.

É Alex Cortez quem faz as honras da casa.

Qual padre a celebrar a missa, segura o livro de capa dura e cor preta, para que o consigamos ver, enquanto enumera orgulhosamente toda e qualquer pessoa que tenha estado envolvida neste manifesto. Desde as pinturas de João Alves, à produção de Fred Ferreira, às fotografias de Vitorino Coragem sem nunca esquecer os especialíssimos convidados (A garota não, Adolfo Luxúria Canibal e Tó Trips).

E é oficial!

Estão lançados os surrealistas!

Agora é apanhá-los!

 

Reportagem e fotografias: Mariana Couto

 

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