“El Dorado” é o mais recente disco de Marcus King

El Dorado” é o disco de estreia de Marcus King a solo, editado no passado dia 17 de Janeiro de 2020.
A Beatriz Fontes ouviu o disco e deixa aqui o seu ‘review’ do mesmo

 

Marcus King introduziu pela primeira vez o melaço de limpeza rouca que é a sua voz através da The Marcus King Band, à qual pertencia enquanto vocalista lead. Logo neste primeiro momento, a imagética e o percurso da composição musical de King estão firmement definidos. É vintage no seu todo, é whiskey de 80 anos.

A banda atingiu um nível de reconhecimento decente quando a tinta ainda estava fresca. Soul Insight, o primeiro LP da banda lançado em 2015, chegou à lista da Billboard no género de blues, assim como o seu segundo disco, lançado no ano seguinte, intitulado The Marcus King Band. Em 2018, Carolina Confessions esteve na lista de Top Current Albums da Billboard.

 

Já este álbum, tratando-se do álbum de estreia de Marcus King como artista a solo, acaba por se fazer sentir como uma nova tentativa de nos chamar a atenção de um ângulo diferente. Com apenas 23 anos, não deixa de ser impressionante constatar o facto de que King tem uma ideia muito clara do que quer fazer em termos de som e a qualidade do trabalho que tem vindo a expor até então. King tem uma alma velha e enferrujada, e a sua música está atulhada dela.

Com o seu Cadillac El Dorado de 80 e a sua guitarra Epiphone El Dorado, o título do álbum acabou por surgir como um escolha óbvia inspirada pelo destino. “El Dorado” é uma versão maturada daquilo que King lançou anteriormente, por ser um álbum diversificado que inverga pela exploraçao do heavy blues, R&B, com uma pitada daquele country-soul honesto e baladas gospel cândidas. É fluente em intensidade e em força dinâmica, ao estruturar um fluxo especifico de diferentes humores ao longo de doze faixas.

 

Sempre em linha com as regras do germinar dos géneros que escolheu como seus, as letras são a expressão crua do blues de coração partido, os prazeres simples da vida como o são as flores silvestres e vinho tinto barato, o reino da espiritualidade e da religião tão ingrenhado na vida do sul, o orgulho associado à partilha da geografia de nascença do tipo de musica que tão intensamente agarrou. O compromisso é também visto através da narrativa estética. Todas as músicas se vêm acompanhadas por um videoclip low budget que solidifica aquilo que é o sonho americano, onde encontramos um Marcus King de fato e chapéu sempre acompanhado pelo seu Cadillac.

A música “Young Man’s Dream” funciona como uma introdução à personagem: um homem trabalhador desde cedo, com uma visão específica que segue intuitivamente. A vulnerabilidade na voz surge a solo com uma guitarra acústica durante uma boa metade da música, abrindo espaço para a entrada de umas teclas de piano minimalistas, uma guitarra eletrica auspiciosa e coros femininos indulgentes, numa expressão completa de intenções muito puras. No mesmo patamar de harmonia está “Beautiful Stranger“, uma canção de amor gospel com um uivo climático de uma guitarra eléctrica que merece o nosso choro.

The Well” enquanto escolha de single promocional foi uma espécie de afirmação em tom de “what you see is what you get“. A estrutura clássica de resposta e contra-resposta entre a voz e o instrumental do blues rock prospera e forma uma atmosfera de rock clássico francamente viciante, que encontramos também em “Say You Will”. “Wildflowers and Wine“, onde a voz de Marcus surge numa melodia em dilatação sedativa, fixa o olhar nas influências nítidas de Otis Redding e BB King. Sendo um álbum que na sua generalidade é consistentemente groovy, as músicas que mais se destacam neste sentido são certamente “One Day She’s Here” ou “Turn It Up“, que poderiam muito bem fazer parte da próxima banda sonora do Tarantino.

 

Para aqueles que ainda não tinham tropeçado no nome de Marcus King, é provável que Dan Auerbach tenha funcionado enquanto alerta de fogo. Dan Auerbach trabalhou com King enquanto produtor e co-compositor de El Dorado. A sua presença no álbum é inconfundível em vários momentos, como acontece com as teclas drony de “Love Song”, “Break” ou “No Pain“, ou numa grande maioria de situções em que a guitarra fuzzy que ao chegar nos faz dizer “yep, é o Dan a tocar”. O que foi feito da sua parte foi a adição de detalhes que contribuiram para a ebulição generalizada do álbum, sem ofuscar o talento de King. Neste tipo de colaborações entre nomes em crescimento e nomes da casa, existe sempre o risco de haver uma contaminação por parte do elemento mais influente. Escusado será dizer que o trabalho dos produtores é a pedra angular para o surgimento de um bom álbum. Trabalhar com um produtor que compreenda as vísceras daquilo que o artista está a tentar fazer ao textura-lo adequadamente é crucial. Foi exatamente isto que aconteceu aqui. El Dorado não vive da presença colaborativa de Dan, que veio trazer adubo a algo que estava já em crescimento sozinho, permitindo que este fosse um trabalho se mantém na pertença artística de King.

Este disco é uma reserva natural de conversas ricas e proporcionais entre instrumentos. Vêmo-nos cingidos por teclas a sacar efeitos dos 60, por violinos que decalcam a sensibilidade necessária, coros flutuantes a salientar o sentimento do gospel transcendente ou do calor do R&B, a elasticidade da percussão como a encontramos em “Sweet Mariona“, a distorção que está lá quando faz sentido estar. Apoiados por um esforço de produção que é aconchegante e íntimo, tudo isto favorece o filho bastardo da linhagem do rock clássico que é El Dorado.

Faz-se sentir como que um achado importante, como algo que estava perdido há muito tempo. É um álbum que declara um know-how digno e entusiasmante pela forma como nos consegue fazer impregnar o temperamento que procura acordar. Enquanto testemunho de paixão pela música, não podemos deixar de empatizar e torcer para que aquele “young man’s dream” se torne tão verdadeiro quanto ele decidiu que deveria ser.

 

Beatriz Fontes

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