Aldina Duarte ao vivo no Bons Sons… Matámos (Dentro de nós) toda a saudade

Cem soldos, 2022

O regresso á aldeia.

Finalmente!

Ainda nem sequer cheguei á bilheteira e já sinto o cheiro a liberdade.

O clima é de celebração.

Sobrevivemos. Não sabemos bem como. Mas sobrevivemos. Foi muito medo. Foi muita incerteza. Foi muita perda. Mas sobrevivemos.

Passaram 2 anos.

E sobrevivemos. 

Aldeia. Festival. Público. Artistas.

Estamos todos cá!

Mortos por voltar a viver outra vez!

As palavras “vem viver a aldeia” nunca tiveram tanto significado.

 

Antes de passar ao concerto da Aldina Duarte, neste tão aguardado Bons Sons 2022, permitam-me que faça uma pequena confissão…

Porque eu sei como sobrevivi. Em parte sobrevivi graças á Aldina. E ao seu Fado que tantas, mas tantas vezes foi a minha boia de salvação. Por isso mesmo, este concerto em particular – a minha estreia nesta magia que é Aldina Duarte ao vivo – tenha sido tão especial. Aproveito também para me desculpar por qualquer hipérbole que possa cometer no texto que se segue, mas acreditem que não se tratará de nenhum exagero, não será nenhuma mentira. É apenas emoção. Pura.

 

Dito isto, passemos ao momento que fez a ladeira que nos guiava até ao palco Zeca Afonso (que não poderia ter outro nome para receber a Aldina), desparecer para dar origem a um mar de gente sentada. Tudo para ver esse fenómeno raro, de autenticidade na música portuguesa, que é Aldina Duarte: a Fadista de alma Punk, que nunca se deixou vergar pelas regras, que vive e defende a sua Arte como poucos conseguem. É comovente de ver!

O ambiente é de espectativa e á medida que os minutos passam cada vez mais nos parece que estamos numa casa de fados a céu aberto. O concerto começa num nostálgico regresso ao passado, em particular ao álbum “Crua” de 2006, com a “Estação dos Lírios”, cujo verso “é um rio que se atravessa sem se ver a outra margem” ainda nos lembra dessa ferida quase fechada, mas ainda aberta, que foram os últimos dois anos e do clima, quase enlouquecedor, de incerteza no qual eles foram vividos.

Mas, tal como canta Aldina num outro Fado (que desta vez ficou de fora) “o vendaval passou” e como tal há que celebrar!

A celebração, neste caso, vem na forma de agradecimento. Depois dos muitos aplausos com que é recebida Aldina dirige-se ao público: agradece ao Bons Sons pelo convite e apresenta (naquela que será apenas a primeira de três vezes) os seus músicos e todos (mas mesmo todos) os seus técnicos.

Voltamos agora ao presente á boleia daquele que já se tornou um “Fado honorário” senão um hino mesmo. “Ela”, que abre o mais recente álbum da fadista “Tudo Recomeça” em muito mais do que beleza, é quando a magia começa a acontecer… O poema escrito por Manel Cruz para a Aldina não é apenas interpretado, é sentido! E é sentido de uma forma profundamente intensa, tanto que a cada “ela” que sai da boca da Aldina nos parece que há algo no seu próprio corpo que se rasga, tal a intensidade com que o faz. Também as palavras “palcos para plantar qualquer canção” são visivelmente sentidas por Aldina sendo que são cantadas enquanto ela olha em redor e olha o chão absorvendo claramente todo o prazer de estar a cumprir exatamente aquilo que está a cantar.

Seguimos “De loucura em loucura” que poderíamos facilmente acreditar ser mais um poema escrito para a Aldina, se não soubéssemos que se trata de um Fado original de João Dias e Martinho D’assunção. Mas a verdade é que os versos “estranha alma é a minha /que se sente tão sozinha / entre tanta e tanta gente” assentam no reportório da fadista que nem uma luva.

Neste momento a minha atenção é desviada por um homem que insiste em atender uma chamada a plenos pulmões. Chamada essa que parece não ter fim… Eu sei que não estamos numa casa de fados de verdade, estamos num festival de verão. Tudo certo. Mas continua a ser Fado, merecia um bocadinho mais de respeito!

Para contrastar com este detalhe menos feliz reparo, quase ao mesmo tempo, num outro pormenor que me deixa maravilhada: por detrás de uma Oliveira, escondida, está a lua cheia a brilhar em tons amarelos. O cenário torna-se assim ainda mais encantado e quase que consigo deixar de ouvir a conversa insistente que vem do outro lado…

Como que num encantamento da serpente, a minha concentração é acordada pela familiaridade das guitarras de “Ai meu amor se bastasse” e os meus olhos voltam de imediato a atentar no palco. Para minha franca alegria, afinal não poderia perder um Fado tão mítico…

 

Pela primeira vez, neste concerto, vamos até 2017, quando ainda se amava loucamente. “Refúgio” é o Fado escolhido por Aldina para nos guiar nesta viagem em que seguimos “no embalo da canoa”. Absolutamente enfeitiçados pelas palavras (desta vez escritas pela própria Aldina) daquele que faz o mais belo poema desse álbum. (desculpa Manel…) E mais uma vez, os versos são sentidos com uma intensidade tal que nos dá a impressão de que a Aldina não os canta, nem os declama, mas os reza. No final diz-se “mesmo contente por aqui estar!!” (no Bons Sons) com um sorriso rasgado e a sua genuinidade é palpável.

Poucos minutos passados e sou novamente interrompida por um grupo (que por alguma razão não para de crescer) de amigos que conversa e ri á gargalhada alegremente mesmo ao meu lado. Isto enquanto a Aldina continua as suas rezas em palco desta vez á Senhora da Nazaré. Olho em volta e vejo um mar de gente que, tal como eu me encontrava há instantes atrás, está encantado e completamente absorvido pelo momento. Só posso concluir que fui mesmo eu quem teve azar na vizinhança. (Não se pode ter tudo… Já diziam os Stones… Tenho lá ao fundo a Aldina a tão poucos metros de mim… Não me deveria estar a queixar de nada na verdade… Só queria poder vivenciar a experiência por completo e assim torna-se difícil…)

Mas passemos estes apartes á frente e foquemo-nos de novo no concerto. No palco ainda se ouve a “Senhora da Nazaré” (primeiro Fado roubado da noite) mas desta vez a Aldina está sentada, e quem nos encanta agora são os músicos. Este Fado em particular tem uns belíssimos instantes exclusivamente instrumentais e Paulo Parreira (guitarra portuguesa), Rogério Ferreira (viola) e Francisco Gaspar (baixo) apoderam-se deles, em conjunto, de uma forma tão apaixonada que o resultado é um momento (que apesar de durar apenas uns dois minutos) nos parece infinitamente mágico. Só no final voltamos a ver Aldina, ainda sentada, também ela envolvida no seu próprio espanto, em perfeita comunhão com o público a aplaudir os seus amigos com um sorriso orgulhosamente escancarado.

E eis que chegamos àquele que foi, sem dúvidas nenhumas, o momento da noite! Ou mesmo o momento do dia todo (porque não?)…  Dia esse esgotadíssimo por sinal… Já passamos por inúmeros álbuns esta noite (quase uma discografia inteira), já ouvimos poemas maravilhosos, já vimos a Aldina e músicos a desfazer-se em palco, e até já ouvimos Manel Cruz. Mas não há nada que não nos tenha preparado para aquilo que vamos ver agora. Nada mesmo!

Para espanto da multidão, e sem qualquer tipo de aviso, as luzes do palco são todas apagadas, e só conseguimos ver a Aldina. Mas por alguma razão também ela nos parece desaparecida. E só regressa quando começa a cantar. (metáfora que encaixa em Aldina na perfeição) Sem guitarras e sem baixo, Aldina canta (ou declama, ou carpe, seja lá o que isto for, é lindo. E é Fado.) E acorda-nos também a nós. Aquilo que lhe sai (diretamente das entranhas) é uma versão a capella de “conto de fadas”. Essa música tão especial que no seu original é acompanhada por uma melodia que nos lembra uma caixa de música, e que agora vive e cresce pela voz da Aldina.  Arrepiante. Não há outra palavra para descrever este momento… Arrepiante!

Perante aquilo que acabou de acontecer o público, que até então estava vidrado num respeitador espanto mudo, desperta aos poucos do seu transe, para aplaudir num vigor que ainda não tinha aparecido e para soltar um ou outro grito de euforia.

O resultado é uma Aldina visivelmente emocionada.

E se eu ainda tivesse dúvidas sobre a dedicação deste público (plantadas por meus barulhentos vizinhos) estas ficaram todas por aqui…  Afinal estamos em Cem Soldos. Aqui a Música é para se amar. Loucamente.

A espiral de emoção continua vertiginosa, e voltamos subitamente ao presente, onde tudo recomeçou, com o poderosíssimo “Antes de Quê?”. Para nos oferecer este Fado em particular, e também talvez por estar ela própria desgastada pela emoção que os seus Fados carregam, Aldina volta a sentar-se (é preciso força para se conseguir ser tão intenso). E se este Fado, na sua versão em estúdio já nos consegue arrebatar da forma que consegue, ao vivo então nem se fala… Aqueles dois últimos “meu amor antes de quê?” que saem projetados do interior mais profundo da Aldina de uma forma tão forte e frágil ao mesmo tempo, sob a forma de uma desconcertante súplica, deixam-nos completamente abismados. É impossível de ficar indiferente a tanta beleza!

Ou julgava eu…

Mesmo depois destes hipnotizantes minutos de emoção no seu estado mais puro, o que eu vejo como resposta é um grupo de pessoas a ir embora.

E lá se vai a minha fé na humanidade outra vez…

Nós sabemos que vêm aí os Pluto. TODOS queremos ir. Aliás TODOS fomos! Há tempo para tudo… Não era preciso essa falta de respeito…

Aquilo que se segue faz-nos sentir que de repente já não estamos a céu aberto, de repente existe um teto, de repente existem paredes: estamos numa casa de fados em Lisboa. Quase que lhe conseguimos sentir o cheiro… Esta é mais uma altura para os músicos tomarem conta do palco. Para isso, o holofote que cobria a Aldina apaga-se,  e Paulo Parreira, Rogério Ferreira e Francisco Gaspar voltam a brilhar numa prolongada e ovacionada guitarrada.

Mal os guitarristas dão o seu último acorde, Aldina repete-nos orgulhosamente os seus nomes enquanto aplaude connosco.

Já não dá para distinguir quem está mais feliz: nós, ela ou os músicos.

Depois desta surpresa instrumental voltamos aos poemas, com mais uma relíquia Manuelina, desta vez aquela que dá nome ao (já mencionado) álbum de 2017 : “Quando Se Ama Loucamente”. No fim da música, eis que chega o tão aguardado louvor ao seu autor (que ainda não tinha sido feita com “Ela” mas que sabíamos que não tardaria). Com um brilhozinho nos olhos, Aldina confessa-se a nós contando que tem uma sorte muito grande na sua vida: para além dos seus Fados, só canta músicas feitas pelo Manel Cruz. Realmente não é para qualquer um… Aproveita ainda para nos relembrar que daqui por uma hora vão atuar os Pluto no palco António Variações. Apela a que sigamos todos para lá “até não caber mais ninguém”. A quantidade de fãs da banda portuense deve ser gigante, dada a euforia com que o público responde, o que não me espanta nem um bocadinho.

(aquele grupo que desertou há bocado nem imagina aquilo que acabou de perder…)

Com o Fado que se segue (o segundo roubado) Aldina mostra-nos uma faceta que ainda não tinha vindo ao de cima, mas que é uma das mais marcantes na sua vida artística: a sua veia feminista. (que há de regressar ainda por mais duas vezes lá mais para a frente) “Não me conformo” é cantado (não acredito que despropositadamente) de pé! A força revolucionária que este Fado acarreta é inegável, e os versos “mas não, não me conformo assim!” repetidos tantas vezes durante o refrão, atingem-me pessoalmente quase como choques elétricos, lições que eu faço o meu melhor por não deixar esquecer.

Há agora uma pausa no concerto (no que á música diz respeito) e a Aldina aproveita para se dirigir á plateia. Percebemos logo o que tema que virá. Conhecemo-lo demasiado bem. É o mesmo que tem sido abordado em quase tudo o que é atividade retomada desde há dois anos. É um discurso inevitável. Aldina começa por dizer “os maus momentos ensinam nos que se aguentamos aquilo aguentamos muito mais” referindo-se a esses tempos negros ainda tão frescos na nossa memória. Referindo-se agora ao Bons Sons, e celebrando este seu tão aguardado regresso, diz que “nada acaba com algo tão bom, algo tão bem feito, e tão verdadeiro”, o que arranca um ruidoso aplauso àquela montanha de gente. Numa nota mais pessoal, confessa ainda que “se, com este concerto, conseguir fazer entender, a um grupo de pessoas que seja, aquilo que é o Fado, fico feliz”. E termina dizendo que “este tipo de festivais são muito importantes para não deixar morrer a Arte!” Palavras que levam Cem Soldos á loucura. OS festivaleiros fazem-se ouvir numa geral e enorme ovação. Quase tão enorme como a Aldina. Quase…

Passada esta conversa com o público, Aldina segue caminho até á “Estação das Cerejas”, e depois daquilo que acabamos de ouvir, é impossível que os versos “eu hei de ser vento norte, rir-me na cara da morte” não ganhem todo um novo poder, e não nos doam ainda mais do que o normal…

Nesta fase do concerto dou por mim a refletir sobre o que é isto de ver Aldina Duarte ao vivo. Chego á conclusão de que a Aldina tem uma magia qualquer. Uma magia que muito poucas outras pessoas neste mundo possuem. A única vez que presenciei esta magia foi, no passado mês de Junho, quando tive o privilégio de assistir ao concerto do Nick Cave. Também ele deixou essa magia espalhada pelos jardins do parque da cidade do Porto.

É igual. A magia é a mesma. Esse dom de curar almas perdias. Pela Música. É tão comovente de ver. E ainda melhor de sentir…

E se até agora eu me sentia absolutamente inspirada por essa aura que envolve Aldina Duarte, com o Fado seguinte, é a sua voz que me surpreende. Ainda não tinha reparado no tamanho da sua voz confesso, estava demasiado perdida na magia, mas com “Porta Maldita” há algo que me desperta e me faz aperceber do poder vocal de Aldina, que cantou durante todo o concerto, acompanhada dos seus músicos, equipada apenas com um microfone, num registo muitas das vezes quase chorado, sem nunca deixar de preencher, numa aparente facilidade, toda aquela clareira aberta. É realmente impressionante!

E é neste total estado de espanto que vejo chegar ao fim o concerto. A Aldina despede-se de Cem Soldos, não sem antes voltar a apresentar os seus companheiros de palco, terminando da mesma maneira que começou, com um regresso ao passado, e canta a “Princesa Prometida” (esse Fado tão pouco Fadado e tão feminista). O público reage de imediato levantando-se em massa para acompanhar a melodia batendo palmas sincronizadas com o ritmo das guitarras.

Obrigada pela noite tão bonita. Para sempre!” ouvimos.

Entre vénias, agradecimentos e aplausos, o palco fica deserto e o público á espera do regresso.

Que não demora muito… É o tempo de beber água e já estão todos outra vez no palco.

O público reage efusivamente a este regresso e ao que este representa: mais Fado. Ao meu lado vejo uma rapariga a pedir encarecidamente, e a plenos pulmões, pelo “Vendaval” (como se estivesse num concerto Rock) o que me enche a alma.

De novo com o microfone em mãos, Aldina confessa que não estava à espera de fazer encore, por ser um festival, por haver outros nomes e horários a cumprir, mas acaba por nos fazer a vontade. Quase que pede se pode repetir a “Ela” porque “já é o meu novo Fado” e porque “parece que nos diz respeito a todos”. Obviamente que ninguém se opõe (nem mesmo a rapariga que tanto queria o “Vendaval”).

Num feminismo com tanto de subtil como de poderoso, Aldina canta toda esta música de mão no bolso, qual Alfredo Marceneiro, num gesto que por si só é uma gigante e deliciosa revolução.

 

E assim nós ficamos, com a certeza de que, como o Manel Cruz descreve tão certeiramente nesta letra, ela nunca aprenderá a ser outra.

É só isso.

Sempre foi.

 

Reportagem: Mariana Couto

Fotografias: Carlos Martins

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