“Tudo Recomeçou”… por Aldina Duarte

Aldina Duarte foi um dos nomes que passou pela edição de 2022 do Festival Bons Sons. A Mariana Couto esteve por lá, mas antes do Festival, ouviu o novo disco de Aldina Duarte e deixou-nos a sua critica ao disco que marcou o regresso da fadista em 2022.

 

Se alguém passa por uma tragédia destas e fica igual, é porque algo não está bem” é o que o diz Aldina Duarte em 2022 acerca dos quase dois anos de pandemia que nos avassalaram por completo sem qualquer tipo de aviso. Em ardente coerência com as suas próprias palavras também a fadista se recusou a ficar igual. Revolucionária de corpo e alma, após um longo período de confinamento, Aldina pegou nas suas melhores “armas”  – a poesia e o fado – e começou a lutar.

Dessa sua luta nasceu um álbum que intitulou de “Tudo Recomeça” inspirada pelos versos de Ruy Belo (não temas porque tudo recomeça / nada se perde por mais que aconteça / uma vez que já tudo se perdeu). Um álbum com uma mensagem otimista, mas que ao mesmo tempo é um grito de revolta contra as sufocantes restrições que nos foram sendo impostas ao longo dos últimos anos.

Como numa irónica chapada de luva branca aos contínuos cancelamentos de concertos, e ao fecho de portas a que tantas casas de fado foram obrigadas (em particular a ”Sr. Vinho – onde canta desde sempre), Aldina escolheu levar para este disco precisamente fados que só costumava cantar ao vivo. Quem disse que as revoluções não podem ser subtis? Acompanhada dos seus parceiros de sempre  Paulo Parreira (guitarra portuguesa) e Rogério Ferreira (viola) e praticamente sem ensaios nenhuns, porque a situação assim não o permitia á altura, mas com as músicas já idealizadas na sua cabeça, Aldina Duarte conseguiu gravar as doze músicas todas tal como as pretendia. Bem, não exatamente como as pretenderia no seu íntimo, porque este negro período de tempo, para além de todas as tristezas já mencionadas, trouxe á Aldina (e à música portuguesa em geral) uma enorme perda: o seu amigo, companheiro, e produtor Pedro Gonçalves. Por essa infeliz razão, e pela segunda vez consecutiva, a produção foi feita pela própria Aldina. Com a certeza de que onde quer o Pedro esteja, está sem dúvida orgulhoso!

Musicalmente é um álbum em tudo concordante com o registo a que a fadista já nos tem habituado ao longo da sua carreira. Um disco maioritariamente composto por fados tradicionais (com exceção apenas da primeira faixa) , sendo que em alguns deles a letra cantada é a original e noutros é escrita pela Aldina, como é o caso dos fados “Paraíso Anunciado” ,“Clausura” e “Muro Vazio”.  Também o tema abordado nos poemas não é nenhuma surpresa para os conhecedores do trabalho da fadista: são quase todos eles retratos de amores terminados, uns com mais tristeza, outros com menos, mas nenhum deles guardado com rancor, interpretados de uma forma tão própria e convincente que quase acreditamos de verdade nessa cantada mentira. Uma arte que já nos tinha sido apresentada no álbum “Quando se ama loucamente”. Arte na qual Aldina é mestre e senhora!

E se a exceção faz a regra, poderia dizer-se que em “Tudo Recomeça” o único não fado faz o álbum. Seria redutor, mas poderia dizer-se… Especialmente se fossemos fãs de Rock e estivéssemos a descobrir o fado pela primeira vez… (tal como me aconteceu a mim há 5 anos atrás depois de ouvir o já referido “Quando se ama loucamente” e a sua canção homónima). Porquê? Ora, porque a abrir, de forma majestosa diga-se de passagem, este novo álbum da Aldina Duarte, há uma surpresa, um “quase fado”, com música e letra de Manel Cruz. Sim, esse Manel Cruz! (outo companheiro de sempre) “Ela” é a segunda música que o vocalista dos Ornatos ofereceu a Aldina, mas desta vez a oferta foi muito mais do que uma música, foi uma verdadeira prova de amizade, já que para Manel esta letra é “como eu vejo a Aldina”. E que maneira tão bonita e certeira! Não fossem os versos (Ela não aprende a ser outra / É só isso / Sempre foi) o resumo perfeito de tudo aquilo que a Aldina tem representado ao longo da sua singular carreira. Mas voltemo-nos de novo para os fados e para a força reacionária que carregam.

Em “Clausura” – título que dispensa explicações – Aldina escreve, prolongando o sabor a Ornatos deixado duas faixas antes, que “a cidade está deserta” e que “não ressoa a voz da vida” referindo-se á triste realidade das ruas vazias de gente, e da vida enclausurada a que a pandemia nos obrigou. Num tom mais otimista relembra-nos que teremos sempre a Música como boia de salvação, pois “um cego cantando via”. Já em “Antes de quê?” voltamos aos fados melancólicos e aos amores perdidos, deixados em versos como “antes do corpo vazio nunca estive á tua espera” ou  “antes do quarto crescente não tive saudades tuas” que  a fadista interpreta de forma tão intensa que o poema acaba por sair num sussurro mais chorado do que cantado. Não fosse a Aldina uma discípula de Nick Cave… (que carinhosamente apelida de “o meu fadista australiano”).

Outra boa música para os fãs de Rock! Para fechar o álbum, a Aldina voltou a fazer das suas, e escolheu, não calar, mas ocultar a sua voz, para deixar brilhar aqueles que também passaram por tempos muito difíceis estes anos (talvez até de uma forma ainda mais despercebida do que os próprios intérpretes): os seus músicos. “Improviso em Ré” é uma guitarrada, bem ao estilo das casas de fado, com o arranjo de Paulo Parreira e Rogério Ferreira. Quatro minutos de fado no seu estado mais puro, que logo á primeira nota da guitarra portuguesa, nos transportam para Lisboa. Mais uma prova do poder da Música…

 

Tudo Recomeça” é um gesto de protesto e de sobrevivência, tanto para a Aldina como para todos aqueles que tenham a sorte de o escutar. E não é precisamente para isso que a Arte serve?

 

Mariana Couto

 

 

Ficha Técnica:

“Tudo Recomeça” –  Aldina Duarte  (Sony Music  2022)

Voz : Aldina Duarte  •  Guitarra Portuguesa : Paulo Parreira  •  Viola: Rogério Ferreira

Produção : Aldina Duarte  •  Co-produção : Joaquim Monte

Gravação  e Mistura : Joaquim Monte  •  Masterização : Helder Nelson

Gravado nos estúdios “namouche” em 2021

Capa : Pedro Cabrita Reis com Nuno Vale Cardoso  •  Grafismo : Rui Garrido  •  Fotografia : Isabel Pinto

 

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