O Meu passado não é o meu futuro… Ute Lemper na Casa da Música

Existe um universo longínquo onde a música trespassa a realidade. Ute Lemper está nesse universo paralelo, que viaja ao ritmo de canções que surgem das mentes de Nick Cave ou Tom Waits e que retrocede até aos anos 40 do século XX, com as reminiscências de Kurt Weill sem descurar a sua própria poesia sonora.

Ute Lemper é uma viajante… uma personagem vivenciada pelas aventuras e ou desventuras que assina de forma única uma história musical que começou em Viena.
Na noite de 4 de dezembro, Ute lemper dissecou de forma eximia a sua história, os seus 40 anos vividos de e para a música, num concerto dividido em 6 “stages”.

Acompanhamos as dissertações de inicio de carreira quando se resolve mudar para Berlin, aquele nicho dentro da DDR como referiu na Casa da Música. Mas Berlin era especial, era a cidade que sonhava e que Ute imaginava. A cidade sombria mas aberta, a cidade suja mas liberta para todas as formas de arte. A cidade livre mas cercada por um outro país.

Nos primeiros “stages” do concerto vivenciam-se em palco a irreverencia de uma juventude que tudo descobria e que a poesia do mestre e as reminiscências de Kurt Weill trazem à memória as arriscadas ruas de Berlin durante a segunda guerra mundial.

A memória aviva-se com o repertório da música francesa, com a poesia única de Jacques Brel, que permite envolver a sala sob o timbre forte e austero de Ute. Uma agressividade melancólica entre extremos de compaixão e desesperos de alma num novo “stage” da sua história em palco

A sua biografia sonora leva-a até 1987, na altura com 24 anos, e depois de receber o Prêmio Moliére por sua atuação no Cabaret in Paris, Ute enviou um postal a Marlene, pedindo desculpas por toda a atenção da imprensa, que a comparou a Marlene Dietrich. Esse famoso postal, mal endereçado a Marlene Dietrich teve como retorno uma conversa telefónica de 3 horas resumida em palco na casa da Música, ao telefone, talvez o “stage” mais denso e expressivo do concerto, em que “Just a Gigolo” ilustrou de forma despretensiosa as memórias de 1987.

Nesta muito sedutora viagem no tempo, Ute lemper leva os espíritos dos anos 90 até ao outro lado do oceano. A poesia de Bob Dylan surge como uma passagem na sua escolha de autores mais contemporâneos.

Longe das escritas da selvagem República de Weimar, a poesia cantada de Lemper embrenha-se pela américa urbana… ou rural numa perspetiva mais decadente, trazendo à memória a Berlin de outrora, a Berlin do coração de Lemper

Ute Lemper em palco é um mistério, uma descoberta, o regresso de uma solidão única que viaja mas regressa sempre ao local de destino. Ute dá corpo à música, envolve-se numa panóplia de idiomas e culturas, confronta o público, revolta-se, agride com determinação mas com paixão, a mesma paixão que a faz exclamar… “O Meu passado não é o meu futuro”

🖋 Sandra Pinho

📸 Paulo Homem de Melo

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