Ainda o “Expresso Transatlântico” não tinha dado à costa e já havia uma magia especial a pairar no auditório da Casa da Criatividade. Era uma magia aconchegante, uma sensação de estar em casa, uma casa (portuguesa com certeza!) que nos fazia lembrar alguma coisa… Alguma coisa muito bonita.
Sentámo-nos mais confortavelmente no nosso assento, olhámos o palco, e fez-se luz. O pano bordado no bombo da bateria. As flores enroladas no suporte do teclado. O tapete redondo no chão. A cadeira. O banco. Dispostos um à frente do outro. Os pedais no meio.
De repente it hits us: cheira a “Dead Combo”!
E de repetente tudo fez sentido.
Afinal estes “rapazes” são os herdeiros, mais do que legítimos, ao trono! (Ou neste caso específico aos tronos.)
Um título que os Expresso Transatlântico provavelmente recusariam numa fase tão precoce da sua carreira (são todos “putos” humildes nesta família!) mas que nós espetadores sabemos que um dia destes lhes irá assentar que nem uma luva!
E (perdoem-me os fãs de Dead Combo) mas pode ainda dar-se o caso de um dia a luva já ser pequena para as virtuosas mãos destes músicos. E então aí começará a ser inventado o futuro. Tendo em conta aquilo a que assistimos esta noite não me surpreenderia que esse dia não demorasse muito a chegar…
É esperar pra ver!
No entretanto, deixemo-nos de comparações e blasfémias e voltemos a focar-nos no concerto.
O espetáculo inicia com um hipnotizante interlúdio de baixo e trompete (cortesia de Tiago Martins e Zé Cruz respetivamente) que serve como que um chamamento solene dos restantes Expresso para o palco. Obedientes à Música, aparecem instantes depois o Rafael, o Sebastião e o Gaspar, devidamente abafados por fortes aplausos, sentam-se nos seus repetitivos spots e eis que começa a festa.
E como qualquer festa que se preze, esta também começa com uma “Primeira Rodada”! Esse tema tão poderoso e elétrico, com que a candura da guitarra portuguesa do Gaspar e o magnetismo da guitarra elétrica do Sebastião nos são apresentados pela primeira vez. Ficámos curiosos. Afinal não é assim tão comum estes dois instrumentos se juntarem… Mas estes irmãos fazem-no sem qualquer tipo de pudor, e fazem-no tão bem.
Curiosidade aguçada é tempo de seguir viagem, à boleia deste Expresso tão especial, desta vez rumo ao Mar. Mas antes de lá chegarmos, o Sebastião toma o micro para nos falar. Diz-nos ter ficado fã de São João da Madeira. Diz-nos que é uma terra muito bonita. (concordamos!) Agradece ao público e à Casa da Criatividade pelo convite. Anuncia que o próximo tema se chama “Anda ao Mar” e que originalmente é partilhado com a cantora Sequin, mas que hoje, como ela não está com eles fisicamente, será tocada numa versão um bocadinho diferente.
Embora não tivessem a poesia de Sequin como farol, o Express Transatlântico não se perdeu no nevoeiro nem na tempestade, e por entre susceções ritmadas de acordes eletrizantes intercalados com imperadores solos de trompete, ainda conseguiu encontrar o mar (que é!).
N’As Ladras – esse restaurante feito Música – é o Gaspar quem parte a louça toda! Mas não sem antes aquecer numa cativante guitar battle com o seu irmão… Batalha da qual saíram ambos vencedores. Depois de fazer sinal ao seu técnico como que a avisar que “é agora! Bora partir isto tudo!” eis que o Gaspar vira Jimi Hendrix, e “ataca” a sua guitarra portuguesa – agora no chão – de slide em punho, levando ao delírio todos os guitarristas que estivessem na plateia. Mas a julgar pelos assobios e aplausos não foram só os guitarristas que deliraram… Digamos que só restou a Criatividade: a Casa foi abaixo!
Depois de um dos momentos mais Rock n Roll da noite, é a vez do irmão mais novo tomar a palavra. Ainda cheio de adrenalina a correr nas suas veias, Gaspar diz-nos sorridente que “se quiserem levantar-se e dançar connosco era o nosso maior prazer”. (pedido que não demorará muito tempo para ser atendido…) Num tom mais sério diz-nos também que a próxima Música se chama “Azul Celeste”, e que é uma Música muito especial, pois “é uma homenagem à nossa bisavó (minha e do Sebastião), a introdução (que vamos tocar) era a música que ela sabia tocar à guitarra, por isso para a homenagear chamámos-lhe “Azul Celeste.”” Isto sem nunca mencionar a que Celeste se referia, num enorme respeito e humildade. (Again, estes “miúdos” não existem…)
Num ambiente de extrema emoção, com os holofotes a condizer com o título da Música, a anunciada introdução é tocada pelos manos Varela de um jeito tão belo e intimista que nos deixa num mini estado de transe. Um estado do qual só acordamos com bateria do Rafa, que nos transporta da casa de Fado onde nos encontrávamos para lá da sua porta, para uma rua bairrista lisboeta. Quando damos por isso está tudo de pé, tanto no palco como na sala, a dançar e a curtir num bonito arraial.
A Música seguinte é a obra-prima do Sebastião! “Quando Neptuno deu à Costa” começa, na sua versão ao vivo, com a declamação de um sentido texto poético que o guitarrista mais velho (que afinal também é poeta! e realizador!) escreveu para este tema em particular. Como se isso por si só não chegasse já para nos cativar, fá-lo “sozinho” em palco. A restante banda está escondida: os holofotes não estão apontados a ninguém senão ao Sebastião. Para além dele, só conseguimos vislumbrar a silhueta de um Gaspar deitado no corpo da sua guitarra, também ele num estado de deslumbramento, enquanto o seu irmão vai “rezando” as suas próprias palavras.
O Poema que serve e se mistura com a Música, vem embaraçado numa estranha vontade de ir, e de ao mesmo tempo ficar, de morrer e ao mesmo tempo viver. Poema do qual retiramos pérolas (afinal estamos sempre no mar…) como estas: “a segunda vez que morri já estava habituado à sensação de não viver / nunca soube estar vivo na verdade, e não me importo com isso / a tristeza não me paga as dívidas”.
Depois dos merecidos aplausos ao Sebastião é agora altura dos restantes Expresso voltarem à tona (quais tágides) e nos encantarem com a fase instrumental da música: um crescendo de melodias quase cinematográficas, que conforme o instrumento nos levam para espaços diferentes, seja para o fundo do mar (trompete) ou para fora dele (guitarra portuguesa).
De volta a terra, o Sebastião aproveita uma pequena pausa no concerto para nos apresentar a banda – Gaspar Varela na guitarra portuguesa, Rafael Matos na bateria, Tiago Martins no baixo, Zé Cruz no trompete – e todos os técnicos que com eles trabalham. Agradece também à “Hot Chilli Music”, aos “Produtores Associados”, e mais uma vez à Casa da Criatividade. Antes de seguirmos viagem, anuncia ainda que a próxima música não é do Expresso Transatlântico, mas eles vão tocá-la na mesma, é “uma música para quem não gosta de ficar calado!” diz-nos. Chama-se “Canção de Embalar”.
Escusado será de descrever a onda de aplausos que essas três últimas palavras receberam…
O carinho por “Zeca Afonso” é mais do que evidente, e como tal, a expetativa (que já estava alta), de repente, subiu a pique!
E ainda assim duvido que alguém naquele auditório estivesse preparado para a versão desconcertante a que tivemos o privilégio de assistir.
Ao contrário daquilo que seria expectável, a introdução não é tocada por nenhuma das guitarras: cabe aos pedais espalhados pelo chão, ao baixo do Tiago e especialmente ao trompete do Zé abrirem esta espécie de portal cósmico e universal, numa melodia tão familiar e ao mesmo tempo tão diferente, para que depois da surpresa do primeiro impacto, aí sim entrem os irmãos Varela, que, cuidadosamente, vão intercalado entre si gentis linhas da guitarra ora elétrica ora portuguesa. Só depois de uma segunda passagem do trompete é que a calma é progressivamente abandonada enquanto o Sebastião nos vais arrancando headbangings enquanto “ataca” a sua Gretsch com violentos power chords, até que regressa novamente para um energético, mas sereno final.
Isto é novo. Radicalmente novo! E antigo ao mesmo tempo. Isto é Lisboa. Isto é Coimbra. E persa também!
Isto é “Expresso Transatlântico!
E antes de partirmos para um dos momentos mais emocionantes da noite (mais um!) eis que a banda sai de cena deixando o Gaspar sozinho no palco. Sozinho não… Muito bem acompanhado pela sua guitarra portuguesa, com a qual nos delicia ao tocar um solo daqueles que só ele sabe, que nos deixa de queixo caído e a questionar se este “miúdo” terá mesmo 19 anos.
Já com os seus amigos de volta ao palco, Gaspar troca as cordas pelo micro para nos apresentar formalmente a Música nova que vem aí. Começa por anunciar (ou pelo menos a tentar…) que “é uma homenagem aos Dead Combo” ( sendo que mal diz estas palavras mágicas é interrompido por um gigante mar de aplausos), e continua dizendo que “e em especial ao Pedro Gonçalves” (eis que o momento pelo qual esperámos o gig todo chegou finalmente, e o público, mais uma vez, fez-se sentir, interrompendo o guitarrista numa barulhenta ovação – aproveito para pedir oficialmente desculpas ao meu vizinho do lado pelo incómodo que possa lhe ter causado nesta particular altura…). Remata explicando que “(a música) Chama-se “Coveiro” porque a personagem dele era o Coveiro”.
Depois de mais uma forte onda de aplausos, o Expresso começa finalmente a tão anunciada festa. Para tal, o Gaspar troca a sua guitarra portuguesa por uma elétrica que, (intensionalmente ou não – pessoalmente gosto de acreditar que sim!) era muito, mas mesmo muito parecida à que o Pedro Gonçalves utilizava. Inicialmente, como que num rock n roll statement, toca-a de pé, e assim continua durante uma boa parte da música, até que regressa ao seu banquinho e à sua “menina portuguesa” para concluir esta homenagem em toda a sua plenitude.
Embebidos numa feliz saudade chegámos, sem vontade nenhuma e num ápice, à estação terminal deste Expresso Transatlântico. Que na verdade são duas estações terminais… “Alfama, Texas” começa com vários assobios, como um comboio prestes a partir, e nós tentamos agarrarmo-nos o melhor que conseguimos ao tamanho gigante deste tema (particularmente àquele delicioso “refrão” em que ambas as guitarras cantam, cada uma com mais efeitos que outra, de tal forma que nem as conseguimos distinguir) antes que as rodas comecem a girar. Ninguém quer ir embora. E já ninguém aguenta sentado! Nem no público nem no palco, onde a desbunda vai alta: o Sebastião passeia a sua guitarra pelo palco, num style que nos faz lembrar o e king “Elvis”, e o Gaspar acaba a festa a tocar bateria com o Rafael.
Para a despedida, o Expresso junta-se todo, numa fraterna vénia, e São João da Madeira aplaude efusivamente.
Tão efusivamente que só sossega quando os “miúdos” voltam ao palco.
Por uns segundos ainda sonhamos em virar a barquinha, mas infelizmente ainda não foi desta…
Mas os “miúdos” não nos querem a bagaço e pão, e oferece-nos uma última rodada para a troca.
Depois do derradeiro brinde com esta banda tão especial e promissora saímos da sala com uma certeza:
Foi bom.
Foi muito bom.
Estar viva aqui, quando o Expresso Transatlântico deu à costa.
Reportagem: Mariana Couto
Fotografias: Paulo Homem de Melo