Bizarra Locomotiva… depois deste concerto vamos parar ao inferno. Mas vamos felizes!

Foi com vista para uma igreja e ao lado de um cemitério (cenário mais do que curioso) que o Basqueiral proporcionou a Santa Maria de Lamas o mais profano concerto a que esta terra alguma vez tinha assistido. Menos de uma hora depois dos Linda Martini terem deixado o palco e o público a ferver, foi a vez dos Bizarra Locomotiva deixarem a sua (ruidosa) marca neste festival. E que marca…

Os músicos são os primeiros a aparecer, Alpha , Miguel Fonseca e Rui Berton sobrem ao palco acompanhados por uma chuva de aplausos. Só minutos depois (porque as estrelas se fazem sempre esperar – mesmo as estrelas (de)cadentes) entra em cena o lendário vocalista Rui Sidónio. E em cena fica durante todo o concerto.

Ao contrário do que seria de esperar o visual de Sidónio não combina com o de Alpha nem de Miguel (ambos com a sua típica caracterização – cabelos esticados, maquilhagem gótica e a pouca roupa envolta em plástico). Facto que deixa o público curioso, mas ao mesmo tempo eufórico, é que hoje, o líder decidiu destoar da sua banda, e apresenta-se de calções, sapatilhas e uma t-shirt dos Mão Morta. Se é para variar, há que variar bem, não é?

Prendida a atenção do público com esse impacto inicial, o concerto começa em força, logo com uma das músicas mais acarinhadas. Ouvem-se as palavras “na febre de Ícaro, morto sonho mais alto” entoadas pelos fãs numa verdadeira devoção pagã – um tipo de entrega que é difícil de encontrar noutros públicos. Dúvidas houvessem: isto é Bizarra! A banda que ainda tem o coração no underground, a banda que não dá concertos – realiza celebrações, a banda onde não existem letras, mas sim poemas, uma banda que se ouve porque se acredita!

Esta celebração em particular continuou com “Gatos do Asfalto” e com Sidónio a berrar “Foge! Foge! Foge!” a plenos pulmões enquanto o público respondia ao seu apelo com vigorosos headbangings.

Em “Desgraçado de Bordo” foi a primeira (de muitas) vezes que o vocalista desceu ao muro de colunas que se encontrava a separar o palco do público, e foi a passear-se por lá, que assumiu que “recusou a moral, recusou a vida”.

Quando chega a altura de um outro hino da banda “Mortuário” acontece um primeiro momento de partilha no qual Rui oferece o microfone a um fã para cantar com ele.  Afinal as celebrações não são nada se não foram partilhas, não é?

Por essa altura os fãs já se encontram num estado de euforia tal que é impossível de controlar o mosh pit que se avizinha.

Sem nunca sair da sua persona (hiperativa, aluada, e altamente perturbada) Sidónio atira-se violentamente para o chão e lá fica estatelado sem se levantar durante vários minutos. Ninguém estranha, todos achamos ser algo normal, típico da irreverência que caracteriza este vocalista, mas á medida que os minutos vão passando, e depois do roadie vir segredar algo ao ouvido dos restantes Bizarra, a coisa começa a ficar séria, será que aconteceu de facto algo de grave? A preocupação tanto veio como se vai assim que a banda e começa a tocar impávida e serena. (como seria de esperar) faz tudo parte da encenação. Breves momentos depois Sidónio “ressuscita” ao som de “Ergástulo” enquanto declama de forma poderosíssima os versos “basta! sou estrume, esta é a minha sentença!” Foi incrivelmente poético, I give you that…

Continuando a sua celebração pagã, e talvez naquele que foi o momento mais profano da noite, o vocalista dos Bizarra, agarra no microfone como se de um aspersório se tratasse e agita-o em direção ao público, como um padre a benzer os seus fiéis. Gesto que leva os fãs á loucura.

Após tocarem “Grifos de Deus” eis que Sidónio sai pelo palco fora, embrulhando-se na multidão, sempre a caminhar para a frente, o que fez as delícias de toda a assistência que assim conseguiu ver bem de perto o mítico artista. Rui só parou a sua peregrinação quando chegou ao spot dos técnicos de som e luzes, aí voltou para trás, e só depois de se deitar num lago inventado enchido com fitas azuis (nas quais se envolveu) regressou novamente ao palco.

Antes de regressar ao “Mortuário” ainda houve tempo para estrear um tema novo “Veia do Abandono” que nem por isso teve uma reção menos entusiasta e barulhenta por parte do público. Uma música viciante que faz parte do mais recente EP “Fenótipvs” lançado em 2021. Uma amostra bastante promissora daquilo que poderá vir no futuro discográfico dos Bizarra.

A Flauta do Leproso” e “Foges-me Em Chamas”, dois clássicos da banda de rock industrial, foram tocados de seguida e recebidas de forma ardente pelo público. Mais uma vez, Sidónio interpretou um dos temas deitado nas colunas quase em cima dos fãs, como não havia de ser o delírio?

Os constantes e vigorosos headbangings continuaram fortes durante todo o concerto, mas atingiram o seu auge com “O Anjo Exilado”, dueto com o grande amigo Fernando Ribeiro dos Moonspell (que apesar de não estar presente em palco, esteve presente me espírito), e só eram interrompidos para agitar os punhos em riste, e para repetir o grito de guerra “Renego! Renego tudo! Renego mais que tudo!” gritado com toda a convicção.

Este é mais um daqueles momentos da celebração em que a energia do público é de tal forma incontrolável que acaba, desta vez, num crowdsurfing, em que o sortudo discípulo mergulha várias vezes pelas primeiras filas, sendo que na última delas é empurrado pelo próprio Sidónio. Mas a comunhão não acaba aqui: Alpha entrega uma garrafa (de vodka talvez? Não tenho como comprovar, não fui uma das felizes contempladas a provar) ao vocalista, que dá um gole, e corre às colunas para despejar o líquido nas bocas dos seus fãs. Again, mais profano do que isto não fica…

E porque os Bizarra não são só o Sidónio (embora este seja uma parte inegável do crisma) há que enaltecer os restantes elementos, que através da sua poderosa e enigmática presença em palco são o segredo para a envolvente atmosfera (sonora e visual) de mística e de degradação a que os Bizarra nos têm habituado ao longo dos anos.

E como não há maneira melhor de enaltecer os músicos do que deixá-los tocar foi precisamente isso que os Bizarra fizeram. Após alguns agradecimentos ao público, foram todos saindo, um a um, até só restar o Miguel (que nunca largou a sua guitarra) em cima do palco. Foi assim que terminou mais uma celebração da Locomotiva: com o Miguel e a sua menina a fazerem a sua magia enquanto lhes apeteceu, até que por fim também ele agradeceu (sem nunca dizer uma palavra) e saiu.

Chegámos á estação terminal.

Reportagem: Mariana Couto

Fotografias: Paulo Homem de Melo

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