A noite de consagração de Nick Cave no NOS Primavera Sound…

Terminou já de madrugada a edição de 2022 do NOS Primavera Sound mas na memória de todos está ainda o primeiro dia do festival, onde e pela terceira vez na breve história da versão nacional do Primavera Sound, Nick Cave foi o ‘Senhor’ do Parque da Cidade do Porto.

Os concertos de Nick Cave são sempre marcantes, até mesmo debaixo de chuva como aconteceu no anterior. Desta vez não choveu e o concerto ainda foi mais especial.

A reportagem que apresentamos, em relação ao concerto do músico australiano, e ao contrário do que seria de esperar, não é de nossa autoria mas sim de uma fã de Nick Cave, Mariana Couto de seu nome, que deixou-nos o relato na primeira pessoa das emoções vividas no concerto do passado dia 9 de Junho.

As fotografias são de Hugo Lima / NOS Primavera Sound

 

NICK CAVE (AND THE BAD SEEDS) – ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS!

Foi precisamente com esta mensagem (I am within you, you are within me) entoada numa absorvente atmosfera, quase sagrada (daquelas que só mesmo o Nick Cave é capaz de criar), que o artista australiano deu por terminadas as duas horas de concerto, e assim se despediu do público que encheu os jardins do parque da cidade no Porto na passada quinta-feira. Para trás deixou 35 mil corações e almas lavadas.

Depois de três anos a pão e água, e depois de um concerto (em Lisboa) cancelado sem data prevista de reposição, as expectativas estavam altas. Exageradamente altas. O público (que bem mais de uma hora antes do concerto começar já se encontrava colado às grades – na esperança de conseguir ser um dos sortudos a tocar a Hand Of God) estava sedento de Música ao vivo. Enjaulados há mais de dois anos, estava tudo a morrer por saltar, dançar e principalmente por desafiar as regras.

Felizmente estavam exatamente no sítio certo!

Eram 21:20 quando, na sua pontualidade australiana, os Bad Seeds começaram a entrar em palco abafados por barulhentos e merecidos aplausos. Não sei precisar quantos segundos ou minutos se passaram desde esse momento até á chegada daquele por quem todos ansiávamos em conjunto, porque a partir do instante em que vislumbrei aquela esguia silhueta, aquele fato preto e aquele inconfundível cabelo, o tempo congelou. O passado, o presente e o futuro deixaram de existir.

Num momento epopeico capaz de deixar os mais sensíveis com um lagrima do canto do olho (guilty!), um anjo, vindo do inferno, enviado por Deus para nos mostrar a beleza que existe na podridão do mundo finalmente apareceu. Agora sim, está tudo certo: o Nick Cave está no meio de nós!

E porque o Nick Cave é o Nick Cave e pode fazer aquilo que bem lhe apetecer, ninguém estranhou a organização totalmente invertida que deu ao seu espetáculo: abrir com dois dos seus temas mais fortes “Get Ready For Love” e “There She Goes, My Beautiful World” (guardados por qualquer outro artista para um eletrizante encore) para no fim se despedir com duas músicas incrivelmente sentimentais Into “My Arms” (não podia faltar!) e “Ghosteen Speaks” interligadas por um vertiginoso mas viciante Vortex.

Sem qualquer tipo de aquecimento, foi logo na primeira música que Nick Cave saiu pelo palco fora e desceu ao fosso de relva, onde se deu por inteiro aos fãs da primeira fila (numa entrega total a que já nos tem, tão mal, habituado), e por lá ficou a correr sempre de uma ponta á outra das grades, como se não fosse um senhor de 64 anos…

A euforia inicial só diminuiu, três músicas inteiras depois, quando voltou ao palco para se sentar ao piano e encantar o público com uma música que avisou ser “to the children”, palavras que levaram a plateia a assobiar em massa adivinhando que viria aí a O Children, excitação que Nick quis agradecer tentando dizer a palavra “crianças”, um gesto que levou o público ainda mais ao rubro, ao que se ouviu Nick responder numa gargalhada “all these years…”. Só mesmo o púbico do Porto para conseguir arrancar uma piada ao Mr.Cave…

“On Jubilee Street” os Bad Seeds fizeram-se ouvir alto e bom som, como grande banda que são, mas a poesia conseguiu falar ainda mais alto, e quando Nick cantou as palavras “when the russians moved in” foi fisicamente impossível não sentir o coração a apertar…

A sensação de aperto no peito perdurou ainda por várias músicas: tínhamos chegado á primeira fase sentimental do concerto. “Bright Horses” foi a primeira música a ser tocada do “Ghosteen” (álbum de 2019 no qual Cave tentou fazer o luto do seu filho Arthur falecido com apenas 15 anos) e serviu para mostrar o porquê de Nick e Warren Ellis serem uma dupla tão perfeita. Seguiu-se “I need you” (tema do “Skeleton Tree”, álbum que Cave se encontrava a gravar aquando dessa mesma tragédia): um momento de extrema comoção que deixou toda a gente de olhos vidrados em Nick enquanto este repetia á exaustão as palavras “just breathe”. Onde é que Nick consegue ir buscar forças para continuar a fazer tours e a cantar músicas destas depois de perder dois filhos (recorde-se que nem há um mês foi noticiado que Jethro – filho mais velho de Nick – morrera aos 30 anos) é algo quase perigoso de perguntar. Só ele o saberá! A nós resta-nos agradecer que o faça.

Já o concerto ia a meio quando o Nick rockstar voltou a aparecer: como que numa purga do clima intenso das músicas anteriores, Nick saltou do piano e voltou á relva, num êxtase contagiante, agarrando as mãos ao maior número de pessoas que conseguia, para gritar em uníssono com o público alguns dos seus hinos mais poderosos. O parque da cidade tremeu com os refrões de “Red Right Hand” e “The Mercy Seat”. Durante essas músicas, Cave só voltou ao palco por escassos minutos para deixar também por lá um bocadinho da sua revolta: com todo o seu carisma natural, Nick fazia lembrar um prisioneiro a ver a luz do dia pela primeira vez em anos, ele esperneava, ele ajoelhava-se, ele cuspia para o chão (covid who?), ele dançava, ele estava (tal como nós) finalmente livre! He’s transforming, he’s vibrating, he’s glowing, he’s flying, look at him now!!

De regresso á companhia dos seus Bad Seeds e do maravilhoso trio gospel que o acompanhava (que viria a brilhar, mais á frente, em “White Elephant”), foi hora de Nick voltar ao banco do piano e às suas poderosas baladas. A eleita desta vez foi “The Ship Song”, música já há muito aguardada pelo público que cantou a letra do princípio ao fim. Só faltou mesmo a chuva para abençoar a magia desse momento…

Sem que uma única alma se tivesse apercebido, dado o magnetismo absorvente com que Nick Cave (e o seu penetrante olhar) conseguiu prender toda a nossa atenção durante quase duas horas, o concerto estava a aproximar-se do seu fim. Facto que o público se recusou a aceitar quando Cave anunciou que iria cantar a sua última música. Com vários thank you’s e alguns obrigado’s Nick despediu-se do público que só deixou de aplaudir quando este regressou ao centro do palco.

Se Nick Cave abriu o seu concerto com uma descomunal e inesperada pujança, deixou para o fim o seu absoluto contraste, e dessa forma ofereceu-nos exatamente aquilo que todos estávamos a precisar: uma longa sessão de terapia conjunta.

Durante as três músicas que fizeram o melhor encore a que já tive o privilégio de assistir, Nick Cave e o seu fiel público exorcizaram (cada um) os seus demónios em perfeita harmonia. “Into My Arms” (provavelmente a música mais esperada da noite), foi tocada por Nick ao piano e entoada por um mar de gente como que numa partilhada oração que todos sabiam de cor e que todos rezavam em uníssono. Um momento de profunda comoção em que pai e fãs pediram a Deus em conjunto pelas almas daqueles que partiram.

Talvez para trazer de volta alguém que ainda se encontrasse hipnotizado pelo que tinha acabado de acontecer, a escolha do tema seguinte foi do maior contraste possível: “Vortex” (música inédita, lançada em março deste ano no álbum “B-Sides & Rarities”) foi um presente para os fãs (desejosos de voltar aos headbangs) da faceta mais pesada de Cave. Com esta música ficou também (não que fosse preciso) provada toda a qualidade e versatilidade de que Warren Ellis é capaz: seja com um violino, um ukelele, com os seus sintetizadores, ou neste caso a solar na guitarra elétrica qual rockstar, este Bad Seed faz tudo!

Antes da derradeira música Nick Cave deixou o aviso “You have to sing for this. It’s fucking hard”, ouviu-se uma gargalhada geral, mal sabíamos nós o quão a sério ele estava a falar… Mal os sintetizadores de Ellis começaram a soar percebeu-se logo que tínhamos voltado ao “Ghosteen” e que esta seria mais uma purga emocional daquelas que nos matam e curam ao mesmo tempo. No meio da multidão (como não poderia deixar de ser) Nick pediu ao público que erguesse os braços no ar tal como ele fazia sempre que se ouviam os coros (celestiais). Sem pensar duas vezes, o público obedeceu e o resultado foi (mais) um momento de consagração quase divina. E foi assim mesmo, envolto nessa devoção, que Nick Cave, feito profeta, se despediu dos seus fiéis prometendo que (mesmo indo embora naquele momento) continuará sempre no meio de nós. Só temos de o procurar.

I am beside you look for me

Reportagem: Sandra Pinho

Texto: Mariana Couto

Fotografias: Hugo Lima / NOS Primavera Sound

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