Mala voadora viaja de “Moçambique” para a “Amazónia” com escala em Guimarães

Nesta última semana do mês que assinala o 13º aniversário do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, o teatro é protagonista com um díptico de peças de uma das mais afirmadas companhias do país: “Moçambique” e “Amazónia”, da mala voadora, sobem ao palco do Grande Auditório a 27 e 29 de setembro, respetivamente.

Com Jorge Andrade ao leme, a viagem começa a 27 de setembro com “Moçambique”, obra premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores em 2017 como Melhor Espetáculo. Jorge Andrade nasceu em Moçambique e veio para Portugal com 4 anos, mas em “Moçambique” (o espetáculo) constrói uma biografia como se tivesse lá ficado. Para tornar credível esta história de vida, ela é imposta à História do país. Jorge Andrade faz agora parte da História de Moçambique e, através dela, das suas vicissitudes políticas, da sua situação no contexto da Guerra Fria, das tramitações da economia internacional a que o país recém-independente foi sujeito.

 

Moçambique” é um espetáculo em que seis atores são contratados para fazer de conta que são moçambicanos, discutem a História à medida que tentam montar a narrativa de um empreendimento, cantam spots de publicidade de concentrado de tomate em línguas de países capitalistas e em línguas de países comunistas, e dançam para representar algumas partes da História, até ficarem exaustos. Jorge Andrade, fundador da companhia mala voadora e encenador da peça, explica que “Moçambique” faz parte da sua história de vida e avança como uma obra ficcional em que se inventa um país em cima da sua própria História. Assim, o encenador cria aqui um terreno especulativo para o que poderia ter sido e não foi, evocando um lugar que nos faz repensar a nossa realidade. A peça, construída em cima de uma situação real – que podia ter alterado profundamente o seu trajeto de vida quando, em 1974, esteve prestes a ser oferecido pela mãe à sua tia, que permaneceu neste país irmão após esta data –, é depois ficcionada de modo a elevar os seus contornos para questões histórico-políticas, propondo uma reflexão sobre diversas questões: “Aquilo que eu faço é contar numa hora e dez minutos a História, um país, o que não é fácil. E como se condensa muito, ela acaba quase por parecer fantástica e irreal. Mas é verídica, por mais absurdo que possa parecer”, explica o encenador e ator Jorge Andrade.

 

A companhia mala voadora cria, neste espetáculo, um registo ousado que muitas vezes roça a comédia e a sátira para falar de um assunto que ainda hoje nos é delicado, o colonialismo português e as suas repercussões na sociedade, na economia, na cultura e até do ponto de vista humanitário. Os figurinos e a cenografia, a cargo de José Capela, dão-nos um lado exótico que por vezes confere alguma cor a tópicos mais soturnos. É precisamente neste difícil equilíbrio entre temas de relevância na ótica política e histórica e a aparente leveza de um palco cheio de brilho e música que Jorge Andrade se revela mestre pois a peça nunca perde a seriedade a que o conteúdo de certa forma a obriga. Este espetáculo é o reavivar de uma memória de Moçambique, dos ideais colonialistas e de tudo o que daí adveio. É também um olhar para dentro de nós mesmos, enquanto portugueses, um olhar sobre Portugal. A história de Jorge Andrade é também um pouco a história de todos nós.

 

Para encerrar esta celebração de mês inteiro, seguimos para a “Amazónia” no dia 29. Nesta que é a sequela de “Moçambique” – que terminou em catástrofe –, o mesmo grupo de personagens resolve aventurar-se num outro paraíso – a selva amazónica – para gravar uma telenovela ecológica: “o planeta precisa, as pessoas interessam-se, é ético, é urgente, vai ter audiências”; assim o justificam. Jorge Andrade, igualmente responsável pela escrita e encenação desta nova incursão, leva-nos a prosseguir viagem para um destino longínquo. Os artistas desbravam novos caminhos e procuram financiamento e as personagens da novela também, porque também elas querem empreender: querem civilizar a Amazónia, seguir o caminho universal da civilização.

O grupo instala-se na Amazónia e a ação desenrola-se à volta de vários temas que estão na linha da frente da atualidade e da polémica como a destruição da floresta para grandes empreendimentos, os índios, um brilhante product placement que evoca marcas como a Cartier ou a controversa Monsanto (maior produtora de pesticidas do mundo, entretanto adquirida pela marca alemã Bayer) e o próprio argumento da telenovela. O entrelaçar de todos estes fios condutores gera um enredo que é uma paródia: “Vamos partilhando com o público a confusão que se gera nestes planos e pretendemos potenciar essa confusão de maneira a criar um campo mais especulativo, que possa destruir qualquer ideia de narrativa e encontrar uma outra forma de olhar, além da lógica como a entendemos. Procuramos criar uma espécie de delírio e ver qual o nosso lugar neste caos”, explica Jorge Andrade. A peça ganha, assim, contornos surreais quando, a determinada altura, se torna difícil discernir se o que está a acontecer pertence à telenovela, ou se é mais uma cena da peça ou até se aconteceu mesmo na realidade

 

Amazónia” é um devaneio louco, uma vertigem de humor negro que fala de assuntos sérios: “Queríamos olhar para o planeta como uma entidade que não dominamos e fazer esta reflexão a partir de um espetáculo de teatro”, justifica o encenador. O espetáculo começa de forma enérgica, com a ambição de querer mudar o mundo mas rapidamente vê essa esperança a desvanecer: “Aquilo que procuramos era que em nós artistas, animistas ou quem quer que seja, houvesse algum descontentamento e alguma confusão. Ou que não vislumbrasse uma possibilidade que não a da ironia para lidar com esta ideia de nos vermos a aproximar de um fim ou de uma destruição. Aquela coisa de estarmos à procura do criminoso, sendo nós o detetive, e depois descobrirmos que o criminoso é o detetive,” argumenta Jorge Andrade. “Amazónia” é uma espiral de insanidade para nos obrigar a pensar sobre o nosso lugar no mundo, mas sempre a léguas de distância do moralismo fácil que se prega aos sete ventos, até porque se trata de um espetáculo “sem boas intenções”, como diz o cenógrafo José Capela.

Como não faria sentido tratar um tema ecológico sem ser ecológico, a concretização deste espetáculo assenta na poupança de matéria-prima: o cenário é emprestado, o desenho de luz é reciclado, as músicas são de outros espetáculos da mala voadora, e as cenas são copiadas de espetáculos de outras pessoas.  Com ou sem boas intenções, um bom exemplo fica sempre bem. No fim do espetáculo, a mala voadora aterra junto do público para um momento de debate e partilha, numa conversa informal.

 

 

Photo: Carlos Duarte

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