Expresso Transatlântico ao vivo no Arraial da Barrinha

Depois de trazer a Esmoriz nomes como Club Makumba, Clã, Ana Lua Caiano ou Pedro Mafama, eis que o Arraial da Barrinha volta a apostar na qualidade e a inovar com (mais) um cartaz de luxo, composto, como já vem sendo habitual, por uma considerável variedade de estilos musicais, passando pelo Fado de Beatriz Felício (30 Junho), pelo Rock dos UHF (6 Julho) e terminando com a Pop dos Fingertips (7 Julho).

E é precisamente entre o Fado e o Rock que encontramos aquele que, talvez, tenha sido o mais surpreendente de todos os nomes anunciados para a edição deste ano. O mais alternativo de certeza.

Aquele que nos fez descer a Avenida da Praia de sorriso escancarado e praticamente a voar.

Uma das bandas mais promissoras da atualidade. “Das melhores coisas a aparecer nos últimos tempos” como ouvíamos alguém, ao nosso lado, convictamente dizer mesmo antes do concerto começar.

Relativamente habituados a passear-se pelo Norte, que é como quem diz a esgotar o Auditório de Espinho, a incendiar o Party Sleep Repeat (São João da Madeira) e a inundar o Primavera Sound (Porto), a banda que junta Rafael Matos aos irmão Sebastião e Gaspar Varela assenta agora arraiais (literalmente!) em Esmoriz.

Hoje, no primeiro Sábado de festa, o palco do Arraial da Barrinha é dos Expresso Transatlântico.

Palco esse que retrata na perfeição (ou não fossem os Expresso incrivelmente atentos à estética da sua Arte) a vida da banda nos últimos meses. Uma vida de estrada, de muitos concertos e muita dança, que os conduziu ao seu primeiro longa duração “Ressaca Bailada”.

Assim, e sem surpresas, aquilo que os nossos olhos encontram, mal chegam ao fim da avenida, já não é aquela escuridão intimista dos tapetes redondos, dos panos bordados na bateria, dos bancos dispostos frente a frente. O que vemos agora são microfones, amplificadores, apenas um banquinho, e luz. Muita luz. Rosa choque. E claro, uma bola de espelhos. Afinal é para bailar.

Poucos minutos passavam das dez da noite quando o Rafael, o Sebastião, o Gaspar, o e o Tiago entraram em cena. Entram todos juntos, sorridentes, e sem pudores nem conversas, começam logo a tocar, dando início à festa. E que festa!

Numa espécie de mini “regresso às origens” (especificamente ao seu primeiro EP lançado em 2021) do tamanho de duas músicas, e numa energia contagiante, a banda abre com a força toda, sacando heabgangings ao público, logo desde o primeiro minuto, desdobrando-se num pouco de tudo e mais alguma coisa, seja em solos de trompete ou em rodeos à portuguesa. Sendo que quando chegam “As Ladras” a plateia vai ao rubro com o atrevimento de Gaspar que ataca sua guitarra (também ela portuguesa), agora pousada no chão, de slide em punho.

Há coisas que não são para qualquer um… São só para as Fadostars… 

Após os merecidos aplausos a este eletrizante início, eis que o Sebastião se chega ao microfone para anunciar que a próxima malha faz parte do novo disco e dá pelo nome de “Porque Nada tem um Fim”. 

E os primeiros a elucidar-nos nessa arte de dar baile à ressaca são os manos Varela, que, algures entre o princípio e o fim (ou não…) dessa mesma malha, nos presenteiam com um momento intenso, quase de desgarrada, no qual nos encantam, cada um com seu solo, cada um com sua guitarra, como que para nos darem a escolher qual das duas a mais bonita. A nossa resposta: a malha toda!

No final é o Rafa quem agradece, ao micro que tem junto à sua bateria, e nos avisa, divertido, que a próxima é para dançar. “Azul Celeste“.

Palavas mágicas que deixam qualquer fã deste Expresso de água na boca. Mas, a versão que o trio nos traz hoje a Esmoriz, em total coerência com a mudança do cenário de placo, é bastante diferente do original que tão bem conhecemos deste clássico transatlântico. Esta é uma versão muito mais arrojada, com menos recato, com menos delicadeza (mas de forma alguma menos emoção), que apesar da diferença, se mantem igualmente viciante. E igualmente azul. Claro!

“Precisamos de mais energia” ouvimos agora a estreante voz do Gaspar pedir ao microfone.

“A próxima é a “Bombália””.

Mais uma palavra mágica…  

Essa palavra que nos faz, de repente, deixar de ouvir o mar.

Essa palavra que nos faz levantar e andar.

Andar com tanta certeza, que nem o chão é necessário para nos sustentar.

Sinónima de desbunda.

De dança.

De transformação.

E sobretudo de liberdade.

Neste tema tão especial, é o Zé quem brilha em primeiro lugar, dando-lhe forte nos sintetizadores, enquanto os restantes Expresso vão dando no groove, sendo seguido pelo Gaspar que, com o seu inegável carisma, termina a música a tocar, empoleirado, em cima do seu banquinho, para delírio da plateia. 

Continuando no registo especialmente emocional das duas últimas músicas, vemos agora o Varelinha retornar ao microfone para, com um sorriso orgulhoso nos lábios, nos anunciar que “a próxima é dedicada ao Pedro Gonçalves dos Dead Combo” (pausa para uma chuva de aplausos) “que é uma grande inspiração” (mais aplausos) “chama-se “Gangster” (assobios de euforia) “porque, para quem não sabe, esse era o nome dele” (gritos de entusiasmo provenientes de toda, mas mesmo toda a plateia).

Coitado do Gaspar nunca consegue fazer esta introdução sem ser interrompido. Mas vá lá… É por uma (muito) boa causa…

E se há pouco o pudemos ver na sua versão Fadostar, a sacar som da sua guitarra portuguesa diretamente do chão, nesta homenagem em forma de música, vemos surgir uma outra versão do Varela mais novo.

Aparece (agora já sem camisa) o Gaspar Rockstar. A solar numa guitarra elétrica com tanta pinta e entusiasmo que até parece que já o vinha a fazer desde o início da noite. 

Muita alegria, muita dança, e muita saudade matada depois, a banda volta ao seu registo Fado n’ Roll original, e mais uma vez sem qualquer tipo de pudores nem avisos, mete logo, de enfiada, a malha mais apetecida, a malha mais forte, a malha que tão raramente aparece ao vivo. Veio à tona hoje, qual milagre, aqui em Esmoriz. Levando a um estado de loucura bailada total.  A “Barquinha” é nossa! E a culpa também.

Sem saber ainda onde a sorte se esconde, mas significativamente mais perto, depois deste momento de comunhão entre público e banda tão intenso, o Sebastião torna ao micro para pedir uma grande (e merecidíssima) salva de palmas para o Conan Osíris, que apesar de não estar cá fisicamente, partilha com eles este sucesso. 

Pedido (barulhentamente) acedido, o concerto segue, agora, para um dos seus momentos mais emotivos.

Para tal, o Tiago, o Zé, e o Sebastião saem, temporariamente, de cena, deixando o Gaspar sozinho em palco.

E o resultado foi ainda mais bonito do que aquilo que alguma vez poderíamos imaginar…

Com a sua menina nos braços, o Gaspar encanta toda a cidade de Esmoriz (que por uns bons dez minutos se transformou numa verdadeira casa de fados a céu aberto) com uma guitarrada de três peças –  que sim, incluía os Verdes Anos – capaz de deixar qualquer esmorizense que fosse a passar de lágrimas nos olhos.

No entretanto, o tempo passou, os restantes elementos da banda voltaram, mas nós continuámos imóveis, perdidos no nosso próprio encantamento, sem saber o que possamos ter feito para merecer testemunhar tamanha magia.

Resta-nos agradecer.

E a agradecer estão também os manos Varela, quando acordamos do nosso transe, divertidos em cima do palco, numa bonita e conjunta declaração de amor a Esmoriz. Que aplaude efusivamente.

Como que numa linguagem secreta, os Expresso Transatlântico avisam-nos que vem aí desbunda, com duas palavras apenas. “Ressaca Bailada

Já tínhamos saudades…

E lá começamos nós, outra vez, a dançar, como se não houvesse amanhã, embalados pela mística da flauta transversal do Zé, e pelos ecos elétricos da guitarra do Sebastião.

Seguimos, num baile contínuo, passando, agora, por esse recanto crescente de energia que é o “Beco da Malha”, abanando-nos, desta feita, ao som dos pratos da bateria do Rafa e dos sintetizadores do Zé, que sejamos francos, não nos deixam grande alternativa…

E eis que, sem vontade nenhuma, chegamos ao fim do concerto.

Antes da despedida, o Sebas toma a palavra, para nos apresentar não só os seus companheiros de banda, Rafael Matos (bateria), Tiago Martins (baixo), Zé Cruz (trompete, teclas, flauta transversal e precursões várias), e Gaspar Varela (guitarra portuguesa), como também toda a restante equipa que os acompanha. 

“Esta é a última malha” avisa, solenemente, o Varela mais velho, ainda ao microfone, antes de proferir aquelas que foram as últimas palavras mágicas da noite, “Alfama, Texas”.

E nós respondemos, não só dançando, mas, desta vez, também cantando. Ainda que não exista letra ou poema nenhum para o fazer… Nesta estação terminal, de dois destinos, torna-se difícil não cantar. Impossível mesmo…

Por isso cantamos, sim, e a plenos pulmões, aquela melodia tão americano-lisboeta que nos enche o peito de orgulho. Todas, mas mesmo todas, as santas vezes que os Expresso a repetem, alegremente, em palco.

Envoltos, ainda, num estado muito particular de euforia, natural de quem acabou de dar um grande concerto, os vários elementos da banda vão, agora, agradecendo o carinho do público, por entre acenos e sorrisos, até que acabam mesmo por sair (devidamente abafados por ruidosos aplausos) de cena.

Mas não demoram muito a voltar…

Quase que a adivinhar que estávamos mortinhos por mais uma malhazinha para entoar, o Expresso faz marcha atrás, e torna ao palco para a derradeira despedida.

“Um fadinho para vocês” ouvimos dizer o Gaspar, aguçando a nossa curiosidade, antes de acrescentar (o seu nome) “Eu dantes cantava.”

E que o Fado corre nas veias destes miúdos já nós sabíamos.

Que eles o conseguem transportar para o século XXI como ninguém também já não é propriamente novidade.

Que o fazem mantendo um equilíbrio perfeito entre ousadia e tradição também não é grande segredo.

Aquilo que nós não sabíamos ainda, e que aprendemos agora aqui, com esta incrível versão (nascida a convite da Antena 1 para a celebração do centenário de Celeste Rodrigues) é que, o Fado, afinal, precisa de bateria, de guitarra elétrica, de trompete, e de sintetizadores.

Ah e de cerveja também!

E de tattoos.

De lenços ao pescoço.

E pés cravados no bombo da bateria.

Afinal o Fado precisa de tudo isso.

E de muito mais.

Porque tudo isso existe.

Só não é triste…

É Expresso Transatlântico.

🖋 📸 Mariana Couto

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