Confesso que não contava, quando cheguei na passada sexta-feira (15 de novembro) a São João da Madeira, em ver tanta gente.
Em deparar-me (muito alegremente, não me interpretem mal…) com uma Casa da Criatividade à pinha.
Depois de um dia tão chuvoso, de uma noite não muito diferente, e, acima de tudo, ao mesmo tempo em que, tão pertinho, no Dragão, acontecia a reviravolta do ano…
Não contava, ao entrar naquela tão bonita e vermelha sala, em vê-la praticamente cheia. Até lá em cima, nos balcões, havia público!
Para ouvir Jazz.
É, no mínimo, comovente…
Mas deixemo-nos de apreciações sobre a surpreendente afluência, e foquemo-nos naquilo que a gerou: o concerto de Eduardo Cardinho (e seu quinteto).
Estando este espetáculo inserido no festival Novembro Jazz a plateia teve direito a um “miminho” antes do gig começar: apresentação exclusiva por parte da curadoria do festival, nas pessoas da Gisela Borges (Casa da Criatividade) e do Rui Miguel Abreu (jornalista e crítico musical – para ser extremamente concisa).
Antes de darem início ao concerto em si, já na parte final dos seus discursos, ambos deram uso aos seus respetivos micros para publicitarem e darem a conhecer um bocadinho mais deste Novembro Jazz 2024.
Ficámos a saber que este é um festival cujo principal objetivo é “mostrar e apoiar talento emergente português do Jazz” nas palavras de Gisela.
Já RMA aproveitou para nos aguçar a curiosidade, enumerando outros nomes que fazem, também, parte da edição deste ano, como sejam o trio de Hugo Lobo ou a banda SAMALANDRA.
Falou-nos, ainda, de uma programação paralela existente neste festival, da qual fazem parte inúmeras atividades, passando por conversas, feiras de vinil, ou DJ sets, que ocorrem nos mais variados lugares.
Podem acontecer na Casa da Criatividade e no Centro Comercial 8ª Avenida, como é o caso da exposição da fotógrafa Márcia Lessa que consiste numa série de retratos de Mulheres, de renome, neste particular estilo musical.
Ou podem, também, sair portas, e ir passear-se pelas próprias ruas de São João da Madeira…
Para que tal fosse possível, foi concebido um palco “improvisado” – ou não estivéssemos a falar de Jazz – de seu nome TrindaJazz em Movimento (que conta com o apoio da Cartonagem Trindade a quem Rui agradeceu) que serve, não só de palco para quem lá queira mostrar o seu talento (amador ou não), como também para promover o diálogo entre duas Artes distintas, propondo interativas conversas entre jovens músicos e ilustradores que, também por estes dias, se encontram a participar no Bienal de Ilustração de S. João da Madeira.
Agora, com o público bastante mais elucidado sobre o que significa verdadeiramente o Novembro Jazz, acaba mesmo, por ser o Miguel Abreu, que já não consegue conter mais o seu entusiasmo, a anunciar o concerto com que todos ansiamos, durante o qual será apresentado aquele que diz, com toda a confiança, ser “um dos melhores discos de 2024”, e até mesmo “candidato a ganhar o prémio PLAY na categoria de melhor álbum Jazz no próximo ano”. (Quem sabe?)
E eis que, depois das longas e merecidas palmas, entram, em cena todos os elementos que compõem este sexteto.
Cada um na sua devida posição, e mais do que prontos para partilharem connosco a magia jazzística que os une, vemos agora Eduardo Cardinho ao pé dos seus teclados, e claro, do seu querido vibrafone, Francisco Santos de baixo ao peito, assim como João Mortágua traz o seu saxofone alto, vemos o Diogo Alexandre sentar-se à bateria, e por fim, o Iúri Oliveira e o José Diogo Martins “perdidos” por entre percussões e sintetizadores respetivamente.
Mal o concerto começa, mal ecoam as primeiras notas dos teclados, (ou julgamos nós virem dos teclados, porque, na verdade, nem conseguimos distinguir, com certeza absoluta, de onde vem realmente aquele som cósmico…) que somos envoltos numa espécie de atmosfera “celestio-espacial”.
Aquilo que sabemos, e muito mais importante, aquilo que sentimos, de facto, é já não queremos sair dela. Não tão cedo, pelo menos…
E ainda bem, porque o mood continua, e vai sendo desenvolvido ao longo deste brilhante tema de abertura, ora seja pelo flow do saxofone, sustentado pela batida firme da bateria, ora pela rapidez melódica com que Cardinho vai abordando o vibrafone, ou ainda pela surpreendente maneira que Iúri vai fazendo os seus metais cintilar, até que, para nosso desagrado, a música termina, como começou, (agora já temos a certeza!) com os teclados, carregados de efeitos, que nos fazem lembrar uma nave espacial a aterrar.
Onde? Isso já fica a cargo da imaginação de cada um…
Afinal de contas, “It Was Just a Dream” right?
E eis que, quase sem termos sequer tempo de respirar, embarcamos numa nova viagem.
Mas com um destino diferente.
Muito diferente…
Sem nunca sair deste mood, mas saindo, sim, da nave espacial, seguimos agora, à boleia do vibrafone do Eduardo, que (mais uma vez) perfeitamente sincronizado com a beleza dura e vincada das baquetas de Diogo Alexandre, nos leva, agora para o Brasil, onde, de repente, nos encontramos a curtir um sambazinho (cortesia do sax alto do João Mortágua), tão bom, mas tão bom, que quase conseguimos sentir o sol carioca a queimar-nos a pele…
Quando regressamos é o Cardinho quem nos hipnotiza com um emocionante solo de vibrafone. (Tempo para mais uma confissão… Confesso que neste particular momento, e por uns bons minutos me esqueci de que estava a trabalhar, esqueci-me que estava a tirar notas para vos poder estar a escrever agora…) Para terem a noção que a palavra “hipnotiza” não foi escolhida ao acaso. É que aquele vibrafone hipnotiza mesmo!
De volta à real, aquilo que vejo é cada solo diferente (e ainda foram alguns até ao fim da canção) a serem, mais do que merecidamente, ovacionados. Sempre. Um a um. (and again comoção…)
Terminamos esta “Anxiety” com ambos os sintetizadores (o do José Diogo e o do Eduardo) a darem cartas, até que o Cardinho acaba por tocar as teclas pelas baquetas duplas para, mais uma vez nos hipnotizar, fazendo-nos sentir que estávamos a subir uma escadaria (para outra órbita talvez…) na qual, a ele, se juntaram o João Mortágua (e seu saxofone) e o Diogo Alexandre (e sua bateria) para a desbunda final.
Não sei quanto a vocês, mas eu, que até tenho um bocadinho de experiência na matéria, posso garantir-vos que nunca tinha ouvido (falar de) nenhuma “Anxiety” que fosse tão cool…
É tempo, agora, passados os dois temas iniciais, para a primeira interação com a plateia.
Cabe ao líder (Eduardo Cardinho) cumprimentar a sala, agradecer a presença do público, e nomear todos os elementos da sua banda.
Introduções feitas, Cardinho, sempre simpático e de sorriso no rosto, segue dizendo que “estamos a apresentar música do meu novo disco”, corrigindo logo, “ou melhor, do nosso novo disco”.
Referindo-se ao álbum “Not Far From Paradise” esta noite interpretado, aqui, em São João da Madeira. (Sendo este o último concerto da respetiva tour de apresentação)
Continua, agora um pouquinho menos sorridente, anunciando que “a próxima chama-se “November 17” porque é a data em que o meu avô [a quem este álbum é inteiramente dedicado] faleceu”, concluindo com o reparo de que essa mesma data está, por coincidência, perto de chegar.
E com estas palavras, o clima muda radicalmente: o ambiente agora é intimista, tal como uma sincera homenagem merece.
É precisamente nesse ambiente intimista que tão especial música acaba por nos embalar, num aconchego único (um aconchego Jazz) que nos aperta e ao mesmo tempo conforta o coração. Quem nos abraça, musicalmente, com mais força, desta vez, é o Iúri que nos encanta com a distinta panóplia de instrumentos de percussão que tem à sua disposição, movendo-se, por entre tudo e mais alguma coisa, desde espanta espíritos, à conga, terminando a bater nos pratos.
O sentimento de nostalgia continua, agora, numa música mais redonda (talvez) e mais introspetiva (de certeza) até como o seu próprio nome indica….
“Life Contemplation” é uma bela peça conjunta (aliás como todos os temas o são…) que coloca em evidência toda a banda, oferecendo-nos momentos tão suaves como intensos vindos praticamente de todos os instrumentos, seja da delicadeza do vibrafone e das percussões, seja da certeza rítmica do baixo e da bateria, sendo que a música não termina sem um toque de magia do saxofone. Claro! Não poderia faltar!
E eis que deixamos de lado a contemplação e voltamos a navegar por outras órbitas.
Cabe ao líder Cardinho guiar-nos por estes “Distorted Thoughts”. Para tal, troca as duplas baquetas pelos sintetizadores, agora ligados a pedais que lhes proporcionam, tal como a nós, uma sonoridade com tanto de galáctico e spacy como de divino e religioso.
Não tarda muito para a restante banda se juntar a esta inesperada (e ao mesmos tempo incrível) introdução. O resultada dessa junção mostra-nos, claramente, que afinal não era nenhum dos rumos anteriores que a música iria seguir, mas sim, o rumo da Liberdade. Afinal isto é um concerto Jazz…
E quem, desta feita, toma a palavra Liberdade mais a seu controlo (com toda a ironia que isso acarreta) é o José Diogo que nos encanta, ao fazer os seus dedos dançar nas teclas dos seus dois teclados, de tal forma, que ninguém naquela sala aguenta esperar que o seu solo termine para aplaudir.
Após as (efusivas e intermináveis) palmas, é, agora, vez do João Mortágua sacar tudo, mas mesmo tudo aquilo que o seu saxofone alto tem para dar, isto antes de passar a bola ao Eduardo, novamente de duplas baquetas em mãos, que no seu próprio transe consegue (sabe-se lá como…) pôr o seu vibrafone a cantar, dando assim por terminada esta espécie de magia em forma de música.
“Está a ser uma alegria tocar aqui, está a ser incrível” ouvimos, na segunda interação com o público de Cardinho da noite, antes de nos dizer que “isto tem o meu nome, mas isto é uma banda e todos dão o seu contributo para a música sair assim”, e, orgulhoso, confessar (também ele) que “[esta colaboração] ficou a soar tão bem” acrescentando, ainda, um elogioso e genuíno “é sempre um prazer tocar com eles”.
Por fim, termina com uma promessa: “Para o ano há de sair outro [disco] um bocadinho diferente.”
Ficamos ansiosamente à espera!
““The Beauty of Simple Things” a seguir, e depois “Hope”” são as penúltimas palavras, da noite, para o vibrafonista de Leiria.
O primeiro dos temas anunciados de simple tem só mesmo o nome, já a beauty está lá toda…
Começa com a percussão em grande, nomeadamente, a bateria do Diogo Alexandre e a conga do Iúri, à qual, não demora muito, até a restante banda se juntar, com o saxofone alto do João Mortágua, claramente, em destaque, seguido do vibrafone do “maestro” que nos faz bater, constantemente, o pé, e quase quase nos levantarmos para dançar ao ritmo do seu groove.
Só não o fazemos porque do outro lado do palco as teclas do José Diogo roubam a nossa atenção e (confesso que) também um bocadinho do nosso coração. Isto antes das luzes “da ribalta” voltarem ao saxofone do Mortágua, para cativantes minutos depois regressarem aos synths espaciais do Zé Diogo.
Lá mais para o final do tema, eis que o sexteto se torna a reunir, proporcionando-nos (mais) um momento de puro Jazz.
A “Hope” com que nos deixam é, maioritariamente, liderada pela bateria, e como que adornada de ouro pelas teclas, todas elas, tanto as da esquerda (do Zé Diogo) como as da direita ( do Eduardo) enquanto se vai juntando, levemente, num calmante aconchego o sax do Mortágua, que again nos embala num relaxante estado de transe perpetuado (que é como quem diz esticado) pelos sintetizadores, e dado por terminado pela batuta (ou melhor pelas baquetas) do Diogo Alexandre que, para nossa franca tristeza, indicam o seu fim.
O fim do tema.
Não da esperança…
Porque depois deste concerto, como não haveríamos de ter esperança no Jazz e na música portuguesa em geral?
Ficava difícil.
Diria impossível mesmo!
E agora, sim, ouvimos, contrafeitos, aquelas que foram as últimas palavras de Eduardo Cardinho, esta bonita noite, para pedir um forte aplauso para o Filipe, que esteve encarregue do som, e para o Zé Nuno responsável pelas luzes.
Sem que uma única alma presente naquela sala o quisesse, eis que o gig chega mesmo ao fim.
Mas Cardinho e amigos reservaram-nos um fim diferente.
Definitivamente diferente do transe do tema anterior…
“Jungle Bees” é a escolhida para este fim.
E não terá sido por acaso…
Aquilo que esta perspicaz escolha nos oferece é, ao contrário do que não aconteceu há dois temas atrás, muito simples:
Um fim em grande. Um fim em alta. Um fim com todo o power do mundo.
(Ou pelo menos é isso que nos parece…)
Um fim mexido, vibrante, e contagiante de alegria.
(Thank you percussão for that!)
Um fim igualzinho a todos aqueles que (quase quase) preencheram a Casa da Criatividade numa noite tão improvável.
Um fim com muito, mas mesmo muito amor pela mais bela das Artes.
Pela Música.
E não será, na verdade, a Música, aquilo que nós temos de mais parecido com o paraíso?
🖋 Mariana Couto