Basqueiral 2023… O mundo pode não ser mais um lugar seguro, mas os Mão Morta serão sempre o nosso refúgio

Depois de, em 2022, ter regressado com toda a força ao seu formato original (mask free), eis que o Basqueiral volta, em 2023, a trazer a Santa Maria de Lamas o melhor da música alternativa portuguesa. O cartaz, coerente com os seus princípios de inclusão, consiste numa eclética mistura de nomes, dos mais variados estilos, da qual, tanto faz parte a sólida experiência dos veteranos, como a promessa de futuro dos emergentes.

A escolha é muita, e de alta qualidade. Por entre os três palcos do festival, neste primeiro dia, passam artistas como Baba Ali, Azia, Indignu ou Petbrick. E embora todos estes nomes sejam promissores, o meu coração roqueiramente poético não resiste a arrastar-me para o palco Tendinha, onde fico, de pedra e cal, até aparecerem os cabeça de cartaz. A realeza do rock avant-garde português. Os Mão Morta.

Mas não sem antes ir espreitar os Cobrafuma ao palco Museu…

Que deram um concerto de respeito! E com direito a Adolfo Luxúria Canibal na primeira fila… Sem nunca sair do seu frenético e envolvente registo, a banda portuense, que se auto define como um gangue desajustado de “trash n’ roll”, mostrou, com toda a convicção, e no volume máximo, ao Basqueiral, o seu EP de estreia. Também ele de seu nome “Cobrafuma”. Ficámos rendidos!

Ainda a trautear que “a vida é um buraco”, e com o pescoço – que ia respondendo, obediente, ao ritmo supersónico das guitarras com fervorosos headbangs – em estilhaços, começo, então, a dirigir-me para o palco principal.

Pouco passava das 22:30 quando Miguel Pedro, Rui Leal, António Rafael, Vasco Vaz, e Ruca Lacerda apareceram. Com todo o dramatismo que o nome “Mão Morta” impõe, os elementos instrumentais da banda, entram em cena, envolvidos numa nuvem de fumo colorida de azul pelos holofotes. Sem demora, começa “o despertar” do concerto, interpretado quase como que se de um chamamento se tratasse. O chamamento daquele por quem todo o Basqueiral ansiava. O vocalista. O letrista. O frontman dos frontmen. Adolfo Luxúria Canibal.

A alma (penada) dos “Mão Morta” surge deambulante, e deambulante continua, passeando-se pelo palco, enquanto as guitarras, e seus pedais, vão tecendo uma melodiosa teia, quase hipnótica, que nos prende a atenção. De tal forma que nem reparamos que, num instante, o Sr. Luxúria já se encontra, virado para o público, agarrado ao suporte do microfone abanando as ancas. Pronto para a ação.

A banda continua, compenetrada, no seu anúncio musicado do apocalipse, que está, finalmente, prestes a ter uma voz. “O mundo não é mais um lugar seguro!” ouvimos anunciar, solenemente, essa mesma voz. A voz inconfundível de Adolfo Luxúria Canibal. E o Basqueiral vai ao rubro!

O segundo módulo (que é como quem diz a segunda faixa) do último álbum da banda prossegue, e a euforia inicial vai-se esbatendo à medida que a letra nos relembra de todos os difíceis acontecimentos que mancharam os últimos anos. Apesar do disco ter saído em 2019, e do poema nada ter a ver com os tempos que se sucederam, torna-se quase impossível não o fazer… Afinal de contas, durante meses o mundo foi tudo menos um lugar seguro.

Ainda dentro do apocalipse, mas fora do estado de hipnose, vemos, agora, a banda mudar drasticamente de atitude. O baixo já não é tocado com arco. As guitarras já não são dedilhadas. E o Adolfo deixa-nos, pela primeira de muitas vezes esta noite, de queixo caído, com a sua performance teatral. Num crescendo de intensidade, vai grunhindo “está tanto frio, tanto friiiiioooo” de uma forma cada vez mais desalmada, até dar a música (e o apocalipse) por terminado, com um profundo e ressonante grito.

O concerto corre a uma velocidade escaldante, enquanto o António Rafael troca a guitarra pelas teclas, num retorno extemporâneo aos verdes anos, e o Sr. Canibal vai trincando pizzas ressequidas. Como consequência (da velocidade ou das pizzas, não sabemos…) sai-lhe, desde lá do fundo das entranhas, um “Ai que eu quero vomitar!” gritado, mais uma vez, de maneira tão intensa, que quase lhe conseguimos sentir a náusea.

Numa curta pausa (no que à música diz respeito) o líder da banda bracarense aproveita para nos cumprimentar.

Boa noite Basqueiral! É um prazer estar aqui!” são as primeiras palavras que lhe ouvimos. Continua explicando que os temas que tocaram (até então) eram “os primeiros quatro módulos do último disco”, e que aquele que acabámos de ouvir se chamava “velocidade escaldante”. Para terminar, aguça-nos a curiosidade, somente dizendo que “agora vamos mergulhar na arte contemporânea”. 

E guiados pelo seu carisma, seguimos, por essas águas (que às primeiras linhas de sintetizadores se tornam bem conhecidas). “A morte não é mais do que uma predisposição para a horizontalidade” diz-nos à queima-roupa, antes de, no refrão, esticar os braços e as pernas, ensinando-nos a “fazer de morto”. Conclui, numa convicção duvidosa, e regada a gargalhadas senis, que “mais vale nascer e morrer do que não nascer e não morrer”.

Arte contemporânea” torna a dizer com um sorriso provocador nos lábios.

E, como que para anunciar solenemente a próxima música, eis que são, agora, proferidas as palavras, que a julgar pela reação efusiva dos meus vizinhos de plateia, eram as mais esperadas da noite:

“Agora Rock n Roll!”

Foi a loucura… E só não foi a loucura completa porque, apesar dos vários pedidos da assistência, ainda não foi hoje que viajámos até Budapeste… Pena. Mas viajámos até ao passado… E por lá ficámos, ainda um bom bocado, enquanto o Sr. Luxúria abanava todo o seu corpo, num espasmo contínuo, totalmente à mercê do ritmo que a restante banda ia ditando. Sem parar. Até cair.

Depois da liberdade vertiginosa dos anos 80, que nos aqueceu os corações, seguimos, antagonicamente, agora, rumo ao frio do apocalipse de 2019. Onde passamos o dia a olhar o sol, e a ver deflagrar clarões de luz.

Mas por muito frio que o fim anunciado, pelo mais recente trabalho da banda, possa ser, a verdade é que não conseguimos deixar de nos sentir comovidos pela maneira incrivelmente poética com que este nos é apresentado. Num misto (estranhamente) perfeito de beleza e brutalidade.

Versos como “olho em volta, com falta de ar / a dar folga ao aperto que me assola / mas as paredes vidradas do bunker refletem-me a ironia”, ou “Não posso chamar vida a esta inércia” libertam no ar uma angústia, que quase instantaneamente dissipam, de tão poderosos que são.

A acompanhar a poesia, uma interpretação, da mesma, quase visceral, que inclui arrepiantes súplicas gritadas ao micro, movimentos mecânicos e olhares vidrados, numa teatralidade imensa (de fazer inveja a muitos autointitulados “atores” que para aí andam) que nos deixa absolutamente abismados.

O mundo pode não ser mais um lugar seguro, mas os Mão Morta serão sempre o nosso refúgio.

Ainda algo perdidos de emoção, somos agora catapultados para o presente, pelas teclas, tocadas com especial delicadeza pelo António Rafael, que assim nos vai oferecendo a primeira canção mutante da noite. A calma do momento é, rapidamente, destruída por um berro da plateia. Um fã, não resiste ao entusiasmo, e grita (ainda mesmo antes do próprio vocalista o fazer) um estridente “cenário!!” dando, consequentemente, o mote para a viagem. Destino: Berlim.

O ritmo das guitarras está mais forte que nunca, e o micro já sai do suporte, rodando no ar, em círculos imaginários, desenhados pelo Adolfo. Enquanto isso, o Vasco sola à grande e à francesa (perdão, à alemã…). Já quase fora do palco, e quase também no fim da música, o Sr. Canibal avisa-nos incessantemente, e com uma expressão incrédula, que “o muro está a cair”. Depois, regressa ao seu posto original, torna a colocar o micro no suporte, e, olhando o horizonte, questiona-se sobre o que faz (afinal) aqui. Com as mãos manchadas de sangue.

Mal a próxima música tinha ainda começado, e já os fãs mais fiéis, (reconhecendo o riff das guitarras logo ao primeiro instante) repetiam em coro a sua melodia, a plenos pulmões, divertidos que nem doidos. Barcelona cá vamos nós! Em palco, vemos agora, o Vasco fazer mais um irrepreensível solo, enquanto o Adolfo se posiciona atrás dele, divertido, agitando os braços, numa espécie de dança indiana. Todo o mundo cabe neste concerto! Até (a)o nascer do sol do Mediterrâneo…

O tema seguinte provoca, exatamente, a mesma reação que o anterior. Às primeiras notas, começa a fervilhar, por entre a assistência, um barulhento coro, misturado com muitos aplausos, e alguns assobios. O motivo: um energético regresso ao passado.

Para defender este ataque de nostalgia Punk com todo o despeito que ele merece, o Sr. Luxúria aproxima-se do público, apoia um pé nas colunas, inclina-se para a frente, e de suporte do micro em riste, vai entoando “e se depois” cada vez mais alto. Cada vez mais freneticamente. Até que termina com um pujante (e delinquente) grito. Claro!

E depois?

Um “obrigado”.

Guardado para o fim estava um tal de “Anarquista Duval”, essa alma sonhadora, que semeou o caos e a destruição no palco do Basqueiral.

Adolfo despede-se de Santa Maria de Lamas com os braços (que ainda agora estavam lançados ao ar numa irónica rendição em nome da lei) bem esticados, antes dos restantes Mão Morta se juntarem a ele, numa cúmplice vénia.

Já o público fica inconsolável…

A cantar, que é como quem diz a suplicar, pelo encore.

Poucos minutos depois, a banda volta a palco, e depois de agradecer, confessa que tentaram “encaixar o maior número de músicas no miserável resto de tempo que ainda temos”, mas, infelizmente, não conseguiram incluir todas as que queriam.

AUM” e “Lisboa” ficam de fora, mas as relíquias, que ainda temos a oportunidade de ouvir, cumprem tão bem o seu papel, que quase nem nos lembramos que não foi, também, desta que voámos até ao Cais do Sodré.

No tema escolhido para abrir o tão desejado encore, Adolfo fala-nos, com (tudo menos) doces palavras, de “pássaros a esvoaçar” e de “cães a ladrar”, enquanto as três guitarras brilham, em conjunto, levando-nos, com elas, para outra dimensão.

Quando regressamos da viagem, aquilo que ouvimos são (também três) curtas palavas.

“Obrigado! Próxima: Sitiados!”

Lá vai, outra vez, o Basqueiral ao rubro… E com ele o Sr. Luxúria!

Que, numa energia inesgotável, continua passeando pelo palco, à medida que nos nauseia com a sua descrição da terna poesia de uma sucata sombria (onde reinam “dejeeetoooos” e “detriiiiitoooos”), parando apenas durante o refrão (onde torna à sua pose Punk do pé em cima da coluna) para nos voltar a ensurdecer com os seus “griiiiiiitooooos!”.

Seguimos surdos, nauseados, mas de coração cheio!

E sem vontade nenhuma de nos despedir dos cabeça de cartaz desta noite…

Mas depois de um clássico destes, assumimos, naturalmente, que o estivéssemos prestes a ter de fazer.

Ou então, ou então…

Encena-se um direto para a televisão.

Que apesar de se alongar ainda por uns bons minutos, nos parece desaparecer num ápice…

Quando damos por ela, já os músicos estão a abandonar os seus instrumentos, e a dirigir-se para a frente do palco.

O concerto termina numa agradecida (e devidamente aplaudida) vénia.

Vénia essa que revela uns Mão Morta muito felizes.

Quase tão felizes como o Basqueiral.

Quase…

 

🖋 Mariana Couto

📸 Paulo Homem de Melo

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