Sons no Património 2022… Tó Trips e as suas guitarras: The Ultimate Love Afair

Decorre de 4 a 28 de outubro mais uma edição do Sons no Património, iniciativa que propõe variados concertos espalhados pela Área Metropolitana do Porto.

O cartaz deste ano conta com vários nomes sonantes da música portuguesa como A garota não, Expresso Transatlântico ou Valter Lobo entre muitos outros.

O passado dia 16  foi um dia especialmente reservado às guitarras, do qual poderiam perfeitamente ter feito parte os dois últimos nomes acima mencionados, mas felizmente o nosso país é riquíssimo em mestres das cordas, e o Sons no Património decidiu espalhar tanto talento nacional pelos vários dias do festival oferecendo aos habitantes de diferentes regiões a oportunidade de ver de perto alguns dos seus guitarristas preferidos.

Dois (ou melhor três…) brilhantes exemplos disso mesmo são os nomes que compunham o cartaz para dessa tarde de Domingo:  Tó Trips, que atuou em Paços de Brandão, e Miramar (Peixe + Frankie Chavez) que por sua vez tocaram em Valongo.

Ficámo-nos por Paços de Brandão.

Mais especificamente no Museu do Papel.

Que compôs um cenário diferente, rústico, e reservado para acompanhar o concerto do Tó Trips.

O guitarrista que dispensa apresentações fez-se esperar uns minutos (qual noiva num casamento), e entrou (believe it or not again qual noiva num casamento) pelo meio de dois corredores de cadeiras organizados, na sala de secagem, num desfile ovacionado até ao placo.

Mas não se preocupem, que as metáforas casamenteiras ficam por aqui. Aquilo que Trips nos traz é tudo menos matrimonial. Embora por vezes nos possa parecer sagrado…

No palco esperam-no as suas guitarras : três elétricas (que incluem a Fender Jaguar que reconhecemos do gig dos Club Makumba de há uns meses atrás), e uma acústica que cruelmente ainda me fez sonhar com um encore, mas que acabou por não ser usada.

Esperam-no ainda, espalhados pelo chão do altar, carradas de pedais, chocalhos e um microfone. Objeto que (fiel à sua natureza reservada) utiliza raras vezes apenas para agradecer ao público ou para partilhar alguma história sobre uma ou outra música que sentisse que fosse especial o suficiente para o fazer.

E eis que o guitarrista (para sempre cangalheiro) chega por fim ao seu mundo, acomoda-se no seu trono, e começa a tocar, dando início ao espetáculo.

Logo a primeira música é tocada com uma especial devoção que já vamos reconhecendo a Tó Trips: é a mesma devoção que o faz encarar os concertos como celebrações quase religiosas (piadas casamenteiras à parte…), e a mesma devoção que o leva a tocar esta Península dos Índios inteiramente de olhos fechados, não de memória, não de cabeça, mas de coração. E é precisamente ao coração (desta vez ao nosso) que aquelas linhazinhas perdidas no meio desta península, aquelas variaçõezinhas de Faduncho vão bater, despertando a saudade da dupla lisboeta feita banda mundial que o Tó tão bem defendia ao lado do seu irmão gangster. Belos tempos! Felizes tempos.

Ainda marcados pelas memórias acordadas pela música anterior, seguimos agora por uma Rua Escura (que nos parece mais do que adequado) sob a orientação da guitarra de Trips e dos chocalhos que prende ao seu pé. Com eles, o músico guia-nos ao longo do percurso, por todas as aventuras e por todos os percalços, a uma velocidade vertiginosa, para que nunca nos percamos e para que consigamos completar a travessia mais fortes.

A música seguinte, que o guitarrista nos apresenta de antemão como sendo O processo de uma aparição, é a primeira surpresa da tarde pois não consta de nenhum dos registos gravados de Trips. O que não significa que não nos emocione tanto ou mais ainda que as músicas que já conhecemos. Muito pelo contrário… Este tema em particular tem uma belíssima e forte sonoridade misteriosa com curtos rasgos de esperançosa apoiados em vibratos e slides carregados de emoção. É quase como que se este tema fosse um tesouro, uma cura para todos os males do mundo, escondido bem nas profundezas do mar, que Trips traz à tona só para nós.

Depois desta rajada emotiva a que fomos submetidos sem aviso prévio (talvez por ter piedade dos nossos corações) o guitarrista lisboeta oferece-nos agora duas músicas um bocadinho mais soft, no que diz respeito a emoções fortes entenda-se, porque a beleza, a devoção e a classe continuam todas lá. Ou não estivéssemos num concerto do Tó Trips

E eis que as nossas veias voltam a ferver de entusiasmo quando vemos o Tó pegar pela primeira vez na sua Jaguar. As nossas mentes fogem quase imediatamente para África e para todas aquelas paisagens sonoras às quais a sua mais recente banda – Club Makumba – tão (bem) nos habituou. Mas o esquema sai-nos furado…. Completamente! Esta guitarra engana bem….

Aquilo que observamos, porém, é algo muito, mas mesmo muito melhor do que a desbunda com que estávamos a contar. Mas não deixa de ser algo que também nos é bastante familiar… Hell, muito provavelmente até é a razão pela qual comprámos o bilhete… (metaforicamente falando porque inacreditavelmente assistimos a este concerto de graça!) E é também a razão pela qual não seria heresia nenhuma se colocássemos o Tó Trips ao lado de nomes como Jimi Hendrix e Carlos Paredes.

Aquilo que observamos é uma arte que Trips domina como poucos: a arte de fazer guitarras falar.

Durante os minutos que se seguiram, completamente envolto no seu próprio transe, Tó conversou com a sua Jaguar e ela falou com ele, num íntimo, melodioso e hipnotizante diálogo ao qual tivemos o prazer de poder assistir.

O estado de abstração continua, desta vez, sob forma de oração a um Deus do Vento, que mais uma vez Trips toca com os olhos fechados, enquanto nos envolve a todos num aconchegante embalo do qual, no fim, ninguém (nem na plateia nem no palco) parece querer acordar.

Esta foi feita na pandemia” ouvimos agora Trips dizer como que anunciar a próxima música, num daqueles raros momentos em que trocou a guitarra pelo microfone, acrescentando “chama-se “Amor em tempos tramados” confessando numa gargalhada logo de seguida “na verdade “tramados” não é bem a palavra certa, mas temos crianças na sala…”  O riso geral que se ouviu como resposta trouxe uma leveza à atmosfera emotiva que se respirava até então naquela sala. Mas foi sol de muito pouca dura…

Bastam as primeiras notas deste “amor em tempos fodidos” (esperemos que não esteja nenhuma criança a ler isto!) tocadas naquele dedilhar tão mágico como familiar e lá vamos nós outra vez de volta aos bons velhos tempos dos Dead Combo. E por lá ficamos durante toda a música a matar saudades. Não posso falar pelo restante público, mas pessoalmente viajei (no espaço e no tempo) até Faro, e até ao ano de 2018, mais particularmente até à memorável noite em que vi Dead Combo ao vivo pela primeira vez e me apaixonei irremediavelmente pela “fúria” com que Trips “atacava” a sua guitarra em cima do palco. É exatamente a mesma que (re)vejo hoje! Arrepiante!

Mas desengane-se quem achar que a emoção fica por aqui…

É que nos pequenos instantes em que descíamos à terra e atentávamos no palco aquilo que víamos ainda fazia doer mais… Um Tó feliz da vida, agarrado à sua menina, a curtir que nem um puto, com um sorriso incontrolavelmente escancarado. Faz lembrar alguém?

Conclusão: esta música é linda, mas não é de todo aconselhável para fãs de Rock n’ Roll português mais sensíveis…

Digamos que é “tramada”…

A música que se segue faz parte da banda sonora (que Trips compôs integralmente) do filme “Surdina” realizado por Rodrigo Areias em 2020. “Ínfimas Coisas” é uma música triste, pesada e extremamente sombria. Talvez seja mesmo a mais sombria que ouvimos até agora… E apesar de não exprimir emoções reais como já vimos outros temas fazer esta tarde, exprime emoções como a revolta e a solidão de um homem abandonado à sua sorte, que apesar de serem ficcionais, quando gritadas à guitarra tornam-se praticamente palpáveis.

Após um supersónico regresso ao passado (e ao primeiro disco a solo de Trips) eis que chegamos à penúltima música.

Música essa que, inovadoramente, vai sendo contruída em tempo real por Tó, ali mesmo à nossa frente, camada a camada, com a ajuda dos vários pedais que tem espalhados a seus pés. A ideia é fixe, mas infelizmente ainda demora uns minutos a dar frutos…. Ultrapassado um rocky start, em que os pedais pareciam não querer colaborar, e o que temos como resultado é precisamente a música pela qual ansiávamos há largos minutos atrás (quando vimos a Jaguar pela primeira vez): uma música cheia de ritmo, de cor e de vibes mediterrânicas – uma música alla Club Makumba.

E assim como para o fim ficam guardados os agradecimentos também ficam as homenagens.

Sem se alongar muito nas palavras, mas com uma guitarra munida de intenção, Tó Trips aproveita o momento para praticar a sua filosofia de comunidade (artística e não só) oferecendo-nos para a despedida uma música que diz ter sido inspirada no trompetista americano Chet Baker. Porque ninguém existe sozinho. Não deixa de ser uma mensagem curiosa para um concerto a solo…

 

Com uma única palavra – “obrigada” – Tó Trips comete o pecado de virar costas às suas guitarras e, num sorriso rasgado, sai gloriosamente de cena.

Reportagem / Fotografias: Mariana Couto

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