Tó Trips ao vivo em São João da Madeira: A poesia de um Popular Jaguar

Foi com a casa cheia que São João da Madeira recebeu, no passado dia 23, o terceiro concerto de apresentação do novíssimo álbum a solo de Tó Trips. Depois de esgotar o Auditório de Espinho e a Culturgest, foi vez de Trips trazer o seu “Popular Jaguar” à terra das tulipas e dos chapéus. (está certo!)

O timing não poderia ser mais bonito: a última quinta-feira de Março. O mês da poesia. Essa arte que SJM celebra como ninguém!

E apesar deste concerto não estar inserido no festival “Poesia à Mesa” (que tem vindo a enaltecer o estilo literário intensivamente ao longo das últimas semanas, com concertos nesta sala inclusive), a verdade é que quando abandonámos a Casa da Criatividade no final da noite, não conseguimos deixar de pensar se aquilo que tínhamos acabado de testemunhar não seria, de facto, também Poesia.

Mesmo que não tenhamos ouvido uma única palavra cantada ou declamada…

Concluímos que, às vezes, não são precisas palavras para fazer poesia.

Às vezes, para nascer poesia, só é mesmo preciso o Tó Trips. E as suas guitarras. Claro!  (mas um já não vem sem o outro…)

São justamente as guitarras as primeiras a prender o nosso olhar mal entramos na sala. Os minutos de antecipação que precedem o concerto são passados num estado de total encantamento pela coleção que Trips trouxe esta noite consigo. Uma clássica e três elétricas, cada uma delas cheia de histórias para contar, sendo que a que melhor se vê (por estar voltada para o público) é a Fender Jaguar.  (Again: Poesia!)

Sem que demos pelo tempo a passar, num instante as luzes baixam, e a nossa atenção, que até então se focava no palco vazio, transforma-se agora em entusiasmo. Afinal de contas é na sombra que o Jaguar se passeia…

Num pormenor capaz de deixar alguns fãs do Expresso Transatlântico (que por esta mesma casa passaram há coisa de um mês) de lágrima no canto olho, eis que Tó Trips aparece —  por entre uma cortina corrida vermelha a fazer lembrar um teatro —  no seu clássico e esguio gingar envergando um impecável fato azul celeste. (And again: Poesia!)

Com um tímido sorriso e alguns baixares de cabeça (mini vénias) Trips agradece à casa cheia de gente que, apesar da chuva e do futebol, apareceu para o ver e ouvir. Depois acomoda-se confortavelmente no seu trono e começa a tocar.

Logo a abrir, leva-nos, com ele, numa viagem para lá dos Pirenéus, por uma “Península dos Índios” à boleia das cordas que manuseia de forma tão melodiosa e cativante. Mas por muito longe que estejamos, os nossos olhos continuam serrados em SJM. Mais especificamente no palco. É em cima do palco que vemos acontecer algo muito especial. E que apesar de já não ser propriamente uma surpresa (afinal estamos a ver Tó Trips ao vivo) ainda nos consegue deixar rendidos. Aquilo que vemos é uma simbiose perfeita ente músico e instrumento. Como se não existisse distinção. Como se aquele pedaço de madeira esculpido, estilizado e eletrificado fosse já uma extensão do seu próprio corpo. E todo o seu corpo é Música: o tronco que curva, como plasticina, sincronizado com o groove que a guitarra impõe, as longas pernas que contorcem incontrolavelmente (ora para os lados, ora para fora, ora para dentro) obedientes ao ritmo elétrico dos amplificadores, e claro, os pés (ou neste caso as cowboy boots) que em conjunto com o soalho de madeira são os grandes maestros de toda esta magia.

Tó Trips e a(s) sua(s) guitarra(s) são um só. E um só ficarão até ao fim.

Antes de partir para o tema seguinte, vai ao microfone (pela primeira de muitas vezes, sendo que essa sim, foi a grande surpresa da noite!) para nos contar que “a próxima música chama-se Rua Escura por causa de um amigo dos tempos da tropa que era da rua escura do Porto”.

Feitas as introduções, lá vamos nós palmilhar esta desconhecida rua. Para nos ensinar o caminho, Tó prende ao seu pé um chocalho, que à medida que a música avança vai ditando o ritmo à nossa própria marcha. Para nos mostrar a velocidade a que devemos seguir, vai alternando, constantemente, alguns pujantes, e eletrizantes acordes com aquele, já tão familiar, e delicado dedilhar. Saímos desta travessia consolados e com a certeza de que este homem nasceu para tocar guitarra.  (dúvidas houvesse…)

Num segundo ataque ao micro, Trips começa por agradecer, e por apresentar a próxima música como sendo “O Processo de uma Aparição”, acrescentando que “(a mesma) Tem a ver com fé. Seja em Deus ou naquilo que for. É sobre ter fé em alguma coisa.”

Ainda o micro não tinha voltado ao chão, nem a guitarra tinha sido escolhida, e já as nossas veias fervilhavam de entusiasmo: vem aí o primeiro tema do Popular Jaguar!

E, como seria de esperar, as nossas espectativas não ficaram defraudadas. Tal como o Tó nos tinha prometido minutos antes, esta aparição em forma de música, ofereceu-nos, por entre slides e vibratos, um dos mais importantes ingredientes para conseguir viver a fé: ofereceu-nos esperança. Não dava para pedir uma estreia mais poderosa para este novo álbum…

Voamos agora “para lá de Marrakesh” à boleia desse tema que, no seu formato original, Trips partilha com Helena Espvall, mas que hoje “ataca” sozinho, perdido no seu próprio mundo e de olhos fechados. O tema compõe o Lado A de um surpreendente 7 ‘’ que complementa o livro de memórias (que também acabou de lançar aquando do disco) intitulado “Ínfimas Coisas”. Objeto que (vários minutos passados e muito a custo) nos avisa que podemos comprar depois do concerto terminar. Só se quisermos…

E eis que chega o momento mais esperado da noite: o momento em que Tó Trips se assume, a nós, como um “Popular Jaguar”!

A música (mais autobiográfica do disco mais autobiográfico) que dá o nome ao mesmo chega finalmente, e, como não poderia deixar de ser, é agora que a sua homónima Jaguar entra em ação. Antes de começar a tocar, o guitarrista confidencia-nos que “esta música era para ser uma cena de música popular ao princípio… E começou a ser feita nesta guitarra, que é uma Jaguar, daí o seu nome”.

O cariz biográfico (que nos atrevemos a assumir ainda há pouco) carregado por este tema em especial, brilha logo aos primeiros acordes (super raws) mandados para o ar e prontamente abafados numa atitude displicente, típica do Punk, com o respetivo sorriso provocador a acompanhar, e continua em evidência durante os restantes minutos, durante os quais aquilo que ouvimos é o seu perfeito inverso, um som incrivelmente limpo e cristalino, num volume tão ténue, que chega mesmo a fazer-nos questionar se a guitarra estará, ou não, ligada ao amplificador. I mean, se isto não é a vida musical do Tó Trips escarrapachada numa música, eu não sei o que seja…

Ainda em modo Jaguar (guitarra e disco) Tó convida-nos agora a rezar a um “Deus do Vento”. E embora as “palavras” da oração sejam hoje um pouco diferentes —  já que não temos o belíssimo conforto do violoncelo de Helena Espvall —  a intenção com que são expressas mantém-se intocável. As seis cordas ao dispor de Trips, e mais umas quantas que ecoam dos vários pedais que tem a seus pés, dão irrepreensivelmente conta do recado!

A música seguinte, também ela construída recorrendo à pedaleira, leva-nos mais uma vez até longe. Mas desta feita, a viagem não é rumo a terras distantes, mas sim ao passado. Mais particularmente aos (bons velhos) tempos dos Dead Combo. E sejamos sinceros: era inevitável… A sonoridade tão particular, a forma como Trips usa o corpo da guitarra para sacar percussão, a “fúria” com que o faz… Continua tudo lá!  E continua tão bem!

Antes de avançar, volta a atacar o micro para agradecer (aliás como faz no fim de cada música) deixando ainda o aviso de que “esta é uma antiga.” E o groove desta oldie é de tal forma intenso que acreditamos piamente que o Tó está a usar o chocalho outra vez. Só quando atentamos nas suas pernas, que com a pica vão esticando de um lado para o outro, é que descobrimos que a batida que ouvíamos vinha afinal de um animado sapateado que estalava no chão…

E animado fica também o nosso coração quando vemos Trips pegar na guitarra clássica (que até então se encontra bem escondida lá atrás das elétricas). Afinal de contas é a primeira vez que vemos o Tó neste registo! São duas as ofertas clássicas que traz consigo hoje só para nós. E que ofertas…Ambas belíssimas peças que, por escassos segundos, nos fazem ver o Carlos Paredes renascido em cima do palco. Obrigada, , por esses segundos. Que foram as verdadeiras “ínfimas coisas”. Essas “que são importantes para nós, mas não para os outros.” Que “são só nossas.”

Para a despedida ficaram guardadas mais duas músicas, num curto regresso à eletricidade dos amplificadores e dos pedais, sendo que a mais derradeira das despedidas acontece sob a forma de homenagem a “um músico que eu gosto muito que é o Chet Baker”. Tal como vimos acontecer no Museu do Papel (Santa Maria de Lamas) há uns meses atrás. E podemos comprovar que a emoção com que é feito este tributo continua arrepiantemente igual.

Dando a festa por terminada, Tó Trips levanta-se. E com ele toda a sala. Não há ninguém que resista a aplaudir, de pé, a poesia deste popular jaguar.

A pedido do barulho do público volta, instantes depois, agora sim, para a despedida final de São João da Madeira. Para nossa surpresa e alegria, fá-lo com a guitarra clássica, mas não sem antes atacar o (agora seu amigo) micro uma última vez. “Obrigado! Obrigado por aturarem isto!” diz-nos ao seu jeito humilde. E para fechar a noite em beleza guia-nos pelos sonhos daquele “gajo que desde pequeno teve aquela cena de sair daqui e fugir para o Pacífico”. E quando damos por nós, já lá estamos, sempre movidos pela (sua) infinita imaginação.

Quando regressamos, aquilo que vemos é um Tó, quase tão feliz como nós, a sair de cena em câmara lenta, numa agradecida vénia, de mãos entrelaçadas e sorriso escancarado.

Não é todos os dias que se marca um hat-trick…

 

Reportagem: Mariana Couto

Fotografias: Patrice Almeida, Câmara Municipal de S. João da Madeira

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