“O Outro de Nós” é uma caminhada na orla do abismo

O dia 26 de maio é sinónimo de um momento singular em Guimarães. A comunidade junta-se, a comunidade pensa e reflete. A comunidade apropria-se das (infinitas) possibilidades que a arte possui e expressa aquilo que tem dentro de si. A comunidade tem Outra Voz e sobe ao maior palco do Centro Cultural Vila Flor (CCVF) para apresentar “O Outro de Nós”, na procura de entender o mistério que são os outros que existem em si e o mistério que é existir nos outros.

 

O Outro de Nós” é uma caminhada na orla do abismo. Quantas pessoas têm a coragem de procurar entender o mistério que são os outros que existem em si? O mistério que é existir nos outros? Não são assim tão poucas. Em primeiro lugar, o grupo deixou-se inspirar pelas palavras do Raul Brandão para desnovelar as nossas próprias palavras, pelos pensamentos do Bernard Stiegler, do Gil, do Fals-Borda, para deixar fluir os seus próprios pensamentos. Entoou e ouviu os arquivos vivos das memórias sonoras que nos rodeiam e tantas outras vozes que completam as peças deste enorme puzzle, que somos nós e os outros.

Depois da fome, da miséria, do fascismo e da guerra, das escravaturas do passado e das austeridades do presente, talvez tenha sido enquanto cantavam ao desafio na sala do museu, que tenham encontrado a coragem para olhar para o abismo e dar um passo em frente. Agora, felizmente, não têm outra alternativa que não, juntos, voar. Num mundo onde se globaliza a precariedade e a fragilidade da condição humana torna-se urgente refletir e agir coletivamente para construir uma nova cultura.

“O Outro de Nós” apresenta-se como uma reflexão sobre o mundo e sobre o papel dos seus atores (cidadãos) em interação com ele. As experiências de existir, os anseios, os desejos e os constrangimentos daqueles que fazem parte do projeto Outra Voz, constituem a matéria base desta nova criação. Em resposta ao desejo do coletivo de expandir a sua exploração sobre o movimento, a voz e o corpo, invadindo espaços de fronteira entre artes performativas, o objetivo deste projeto passa por potenciar o hibridismo e assegurar uma contínua autonomização do grupo no futuro.

É a partir da memória, da criatividade e dos contributos dos participantes que, desde o início de 2017, se tem vindo a alicerçar esta nova criação. “Os ensaios duram há cerca de um ano e meio e acontecem com uma regularidade mensal, num ensaio de três horas, para facilitar a presença de todos. (…) São pessoas que atravessaram várias gerações, temos pessoas que viveram no tempo do fascismo, que foram à Guerra Colonial, viveram a Revolução do 25 de Abril, e que trabalharam em milhentas ocupações”, aponta José Eduardo Silva, encenador convidado pelo grupo para esta criação.

 

“É preciso centrar aquilo que se faz nas pessoas e perceber com elas o que é que querem fazer ou porque é que decidem juntar-se em grupo para cantar. Sair da linha em que todos os cidadãos são mais ou menos colocados enquanto consumidores de alguma coisa, inclusivamente de cultura e de bens culturais. Aqui, o caso é o contrário. É conseguir encarar os cidadãos, não como consumidores, mas como produtores de cultura, da sua própria cultura”, aponta ainda José Eduardo Silva. No final da apresentação em palco, está ainda reservado um momento em que público e artistas se juntam numa conversa informal em torno desta criação no foyer do auditório.

 

photo: Ivo Rainha

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