“Hamsa”… primeiro álbum dos Kite já disponível

“Hamsa” é cinco traduzido do árabe e são 5 as canções que este disco nos traz. Uma mão cheia de composições com arranjos originais de Kiko Pereira onde há também dedo de Mário Barreiros, para uma abordagem jazzística de temas de Bob Dylan, Björk, Beck, Michael Jackson e Propaganda.

É o primeiro trabalho, mas é uma obra de maturidade que vem atestar que a canção de intervenção pode surgir sob várias formas, não sendo de todo inocente a escolha dos temas ou não fosse hamsá também o amuleto islâmico que do comum uso contra o mau-olhado se assume atualmente como símbolo de esperança de paz no Médio Oriente.

 

Em Jóga (Björk), a primeira faixa do álbum, Kiko Pereira anuncia ao que vêm os Kite. As cordas e o ambiente etéreo delicodoce do original dão lugar cimeiro ao piano de Telmo Marques, revestindo a canção duma tensão que desagua pela voz num sentido “state of emergency”.

Estabelecido o mote, segue-se Lazy Flies (Beck). A canção que na letra constata e sublinha o conformismo em vigência, originalmente no galardoado Mutations (1998), e que terá sido ofuscada pelo sucesso do single Tropicalia, mas não só por isso será a faixa mais dificilmente identificável. Em Hamsa, Lazy Flies é jazz tout court e do original apenas subsistem letra e traços melódicos, sobressaindo José Carlos Barbosa com um primoroso virtuosismo a lembrar Christian McBride ou Ron Carter.

A Hard Rain’s A-Gonna Fall (Bob Dylan) assume pelos Kite quase 11 minutos de arrepiante emoção, aportada inicialmente pelo piano e pelas cordas do contrabaixo de José Carlos Barbosa, mas principalmente pela interpretação vocal que começa exímia e melodiosa para nos ir envolvendo e levando quase que a um protesto visceral onde, nesse momento, predomina a bateria de João Cunha.

Depois Duel (Propaganda), que é o single deste trabalho já com vídeo disponível no Youtube, surge praticamente irreconhecível. O hit pop da banda alemã (de 1985) foi depurado do romantismo e roupagem algo kitsch em voga à época para se assumir agora pungente e panfletária. Se Claudia Brücken nos Propaganda falava de amor(es), Kiko Pereira nos Kite eleva-a para uma abrangência de sentimento onde se percebe que os “winners and loosers” já não são apenas amantes e as cicatrizes que refere a canção podem bem ser muito mais profundas.

Fecha-se Hamsa com Earth Song (Michael Jackson) que vive no primeiro meio minuto apenas na voz de Kiko e, de todas será aquela que, no que diz respeito ao sentir da interpretação vocal, mais se aproximará do original. Um lamento na cadência inicial da voz, mas também uma urgência que se vai instalando a partir do meio da canção para culminar em apoteose, na subtil diferença de se com Jackson a canção termina em coros de vocalizações depois de perguntado “Do we give a damn?” com os Kite a canção como que estaca, deixando-nos a pairar em jeito de desafio um “What about you?”.

Em “Hamsa” pode-se começar por estranhar este trazer ao jazz o que nasceu pop, mas entranha-se rapidamente pelas opções de composição e arranjos, que de óbvio nada têm. Não é nem um disco fácil no sentido do termo easy listening, nem muito menos cai na classificação de smooth jazz por onde geralmente se ficam versões jazz de temas pop. “Hamsa” é intenso, inteiro, propositado e conceptual. “Hamsa” é um disco a descobrir.

 

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