Um casal é convidado para jantar na vivenda de Lise, num bairro chique. Assim que os visitantes entram na sala de estar, o mordomo e o convidado reconhecem-se. O jantar nunca acontecerá. Instala-se um perfume de mistério, de angústia, de violência. Assistimos a imagens brutais, que nos precipitam no vórtice de um drama que nunca se percebe se corresponde a uma realidade vivida, a uma filmagem cinematográfica ou a um pesadelo. Fora de campo é um espetáculo dançado, teatral e cinematográfico. A coreografia funde-se no drama e as personagens passam incessantemente do ecrã para o palco. É na tensão entre vítima e carrasco, no meio de uma atmosfera destrutiva que remete para um qualquer regime totalitário, que Fora de campo se desenvolve.
Quantas vezes não damos por nós a comentar um episódio da nossa vida quotidiana, ou imagens televisivas ou da internet, e a exclamar: “Estarei a alucinar?”. O mundo que nos rodeia parece-nos por vezes uma realidade alucinada. As mais das vezes, a rapidez e a globalização da informação privam-nos do distanciamento necessário para descodificarmos aquilo que vemos. Será que nos tornámos atores/espectadores de um “grande teatro” no qual a realidade e a ficção se misturam incessantemente, sem que possamos separá-las? Procurei explorar esta questão da “realidade alucinatória” nas suas dimensões sensorial, política e poética. Em Fora de campo estabelecem-se laços cada vez mais estreitos entre as artes de palco (a coreografia, em particular) e a imagem filmada. O espectador mergulha num universo multidimensional, no qual a pluralidade de pontos de vista é verdadeiramente fascinante.
Nesta “dança-cinema” procuro mergulhar os espectadores num universo multidimensional: são-lhes dados os corpos que dançam no palco e a projeção desses mesmos corpos captados pelas câmaras, em direto ou em diferido, assim como planos exteriores montados em estúdio. Esses distintos pontos de vista geram novas realidades: constrói-se um jogo de ecos entre a personagem (e os seus duplos) e o espaço que habita. Por outro lado, é criado em cena um espaço “fora de campo” que confunde a perceção: aquilo que vemos no ecrã durante a representação é uma imagem em direto ou uma montagem? Onde é que acaba uma e começa a outra? Quando é que embarcamos na ficção (no filme) e quando é que estamos na realidade do palco (o próprio instante da representação)?
Michèle Noiret
Centro Cultural de Belém (Lisboa)
13 de Julho 2018 | 21.00h