CCVF abraça dia mundial da Dança…

Nos dias 27, 28 e 29 de abril, a dança celebra-se no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), em Guimarães, com a estreia nacional da nova criação de Jefta van Dinther e a apresentação do mais recente trabalho de Tânia Carvalho.

A 27 e 28 de abril, às 21h30, Juan Pablo Camara e Roger Sala Reyner pisam o palco do Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor para interpretar “Dark Field Analysis”, uma peça em que o sangue serve de analogia para olharmos para dentro e para fora: dentro e além de nós mesmos. Na sua mais recente criação, o coreógrafo sueco-holandês Jefta van Dinther evoca a intensidade de se estar vivo, colocando os humanos em relação com outras formas de vida. O orgânico mistura-se com o sintético, o humano com o animal e o material com o etéreo. “Dark Field Analysis” desenha o seu nome a partir de um ramo da medicina alternativa que utiliza o método microscopia do campo escuro para diagnosticar condições corporais sistémicas que tenham origem no sangue. Uma longa conversa desenrola-se entre dois homens nus num tapete, mas a conversa compreende muito mais do que os factos médicos.

O sangue é aqui metáfora para falar da significância de se estar vivo, para questionar e refletir, entre dança e conversa, sobre a intensidade da vida e sobre se essa intensidade é mesurável, variável de um ser para o outro. Numa conversa dançada, em que os dois corpos tanto concordam como se questionam, o vermelho vivo do sangue é sinónimo de introspeção, é ponte para observar o mundo, é elo de ligação entre os vivos, entre as vidas que pulsam. Jefta van Dinther convoca esta medicina alternativa que revela verdades fundamentais sobre o corpo estudado a partir da análise do sangue para pensar a própria existência do homem e da natureza que o rodeia, mas da qual também é parte integrante. Van Dinther é um dos mais promissores coreógrafos contemporâneos e o seu trabalho parte de pesquisas meticulosamente estudadas que depois se traduzem num domínio do corpo que transforma o movimento em linguagem. Os corpos nus em palco desafiam a perceção do público numa dança que ora nos faz questionar se se tratam de homens ou máquinas, amantes ou estranhos. Os corpos, ansiosos, contaminam-se num prelúdio que poderá ser de um novo organismo.

Com esta peça, Jefta van Dinther constrói um mundo de uma beleza transcendental, partindo da microscópica harmonia contida numa gota de sangue, ponto de partida para a obra que agora chega a nós. Com o mistério da origem sempre latente, presenteia a audiência com uma sinestesia de texturas, sons, cores e movimentos para nos fazer ver os vários lados que sustentam a vida: o humano, o animal, a matéria, o espiritual. O coreógrafo joga com a luz e o som para levar a plateia a um transe tangencial que vai ganhando amplitude conforme se aproxima do fim. No final do espetáculo, Jefta van Dinther senta-se com o público no foyer do auditório e abre-se à conversa para um diálogo que convida os espetadores a abordar todas as curiosidades em torno desta criação.

A 29 de abril, às 17h00, os holofotes da dança viram-se para Tânia Carvalho e a sua mais recente criação, “Um Saco e uma Pedra”, uma peça de dança em forma de filme onde a coreógrafa troca o palco pelo ecrã. Tânia Carvalho começa por nos desafiar a imaginar que há uma peça de dança. Que essa peça de dança se tornou consciente da sua existência. Tornou-se um ser. Um ser independente, capaz de tomar decisões por si mesmo, sobre si mesmo. Decidiu ir ao cinema. Pelo caminho encontrou um saco e uma pedra. Agarrou o saco, agarrou a pedra, e levou-os consigo. Talvez viesse um dia a precisar deles. Fez o seu caminho, chegou ao cinema. Mas tinha por hábito estar do lado do palco, não do espetador. E foi por isso, e por mais nada, que saltou para o ecrã.

A criadora confessa que quando faz um desenho coreográfico para uma peça de dança, a perceção desse desenho muda consoante o lugar onde está situado o espetador. “Quando filmo esse desenho coreográfico, a relação, o ângulo de visão entre o espetador e o desenho coreográfico está fixo, permanece o mesmo, é virtualmente o mesmo. Em cada um dos ensaios das minhas peças coreográficas procuro sentar-me em lugares diferentes. Quero perceber quantas formas pode ter esse desenho coreográfico que estou a compor. E de que forma o posso trabalhar para me sentir satisfeita com todos esses ângulos de visão.”. Agora é diferente. A coreógrafa pretende tentar o contrário. Ter um ponto fixo. Como se houvesse apenas um espetador. Pretende explorar outras coisas. Coisas que não pode tentar nas artes de palco. Coisas que vá encontrando pelo caminho. Coisas que possam vir a ser úteis. Agora a câmara é o único espetador. Através dele, todos irão começar a ver. Está situada num ponto fixo, ainda indeterminado. Os bailarinos estão em movimento, criam planos diferentes. Entram e saem do campo de visão. Viram-se e rodam sobre si, aproximam-se ou afastam-se. Os movimentos configuram uma peça de dança. Uma peça de dança que dança, mas que brinca com o próprio facto de saber que está a ser filmada: “Um espaço negro, vazio. Um cenário feito apenas de luz. Nove bailarinos, um saco, uma pedra.”

A lógica da magia posta a descoberto leva a magia ao seu fim. Quando se compreende o mecanismo da ilusão, ela perde-se no conhecimento. O iludido passa a desiludido da mesma forma que o desconhecido passa a conhecido. Iludir-se implica desconhecer, conhecer significa perder a ilusão. Mas o verdadeiro e o mais profundo exercício da magia significa guardar em si os dois planos. Depois de perceber o truque, voltar a entrar nele de corpo inteiro. Depois de compreender a técnica da magia, olhá-la nos olhos e sentir o seu jogo. Depois de entender o mecanismo, voltar à sua sensação. Depois de descobrir o engano, deixar-se enganar com ainda maior intensidade. Depois de ser iludido, entregar-se de novo à ilusão. “Um Saco e uma Pedra” foi coproduzido pelo Centro Cultural Vila Flor, pelo Maria Matos Teatro Municipal e pelo Théâtre de la Ville – Paris.

 

Photos: Ben Mergelsberg (“Dark Field Analysis”) / Aleksandar Protic (“Um Saco e uma Pedra”)

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